Lugar da psicanálise no Colégio Graphein

Construir um modelo de Escola que represente um espaço intermediário entre uma Escola Terapêutica e uma Escola comum, lugar que se autoriza a legitimar o saber pedagógico mas que mantém o olhar para as subjetividades norteado pelos fundamentos da Psicanálise,traduz-se numa tarefa difícil e sempre incompleta.

Nesta percurso de construção onde a ideia foi sendo delineada numa estrutura funcional, estratégias foram se definindo, efeitos foram avaliados, enfim, tem-se algumas reflexões organizadas numa espécie de primeira pele circundante da instituição.

Preocupa-nos pensar o lugar que o saber psicanalítico tem neste processo, seus limites e adequações. Buscamos reflexões a partir de modelos de instituições diversas, desde aquelas que atendem crianças psicóticas, até as escolas tradicionais comuns norteadas para a aprendizagem de crianças ditas “normais”.

Classicamente, sabemos que a Psicanálise só pode ser pensada como eficaz dentro do enquadre individual, onde pode ocorrer a análise da transferência e a interpretação. Mas, através das construções que se sucederam neste referencial não se pode negar os diferentes efeitos e sua grande importância terapêutica quando alguns conceitos são utilizados fora deste setting tradicionalmente definido.

No Colégio Graphein entendemos que a ideia que o criou fundamenta-se basicamente num olhar psicanalítico sobre o sujeito, ou seja, o “olhar” que possibilita lugar para existir a “diferença”. Neste sentido,a filosofia básica está alicerçada naquilo que define a posição psicanalítica.

Este “olhar “também permanece no processo mais amplo de leitura dos mecanismos de funcionamento geral da instituição como um todo, demandada sistematicamente pela Direção e feita através da ajuda de uma consultoria .

O trabalho de capacitação contínuo de técnicos, professores e funcionários fica articulado numa montagem coerente com a demanda inicial, organizando-se em torno de um eixo também psicanalítico que é o da “escuta analítica”, “escuta” enquanto mecanismo voltado a produzir efeitos através da circulação dos diferentes discursos grupais em torno das questões que os diferentes sujeitos articulam em momentos específicos.

O impasse do aproveitamento da Psicanálise não está na montagem da estrutura da Escola, mas encontra-se no momento de intersessão com o pedagógico, mesmo em se tratando de uma cena onde os sujeitos a serem intervidos pedagogicamente frequentemente fazem emergir restos de um inconsciente não organizado.

Como este referencial pode contribuir no trabalho diário de um professor ou funcionário? Transmitir a Psicanálise enquanto um saber foi algo tentado algumas vezes mas seus efeitos foram questionáveis, o que nos levou a usar a estratégia somente em alguns momentos muito específicos . A informação nem sempre se mostrou suficiente para sustentar a conduta adequada de quem necessitava realizar algum manejo.

Porém, também observamos que em momentos confusionais em que determinado grupo se encontra, a estratégia de usarmos em algum grau o saber funciona como uma espécie de holding e reorganiza a tarefa.

Acreditamos que, às vezes, a informação funciona num tipo de grupo que executa tarefas numa cena na qual existe permanentemente um nível grande de ansiedade e desorganização. Verificamos que as pessoas que lidam rotineiramente com estas crianças e adolescentes mais “desorganizados” tendem a instalar transferências intensas com algum dos técnicos ou direção e, neste sentido, faz-se necessário sustentar-se em alguns momentos um saber que funciona como reorganizador e, ao mesmo tempo, reintroduz o pensamento pedagógico, diminuindo a ameaça de predominar aspectos inconscientes no grupo.

Mas se a informação não é a contribuição mais importante da Psicanálise no Colégio, de que forma seus conceitos permeiam o trabalho realizado?

Buscando respostas para fundamentar a forma como procuramos trabalhar com a Psicanálise na Instituição encontramos uma definição traduzida por Cristina Kupfer da fala de Maud Mannoni quando esta situava o trabalho realizado em Bonneuil. Trata-se do termo ou conceito o qual denomina de “clareagem”.

Mannoni situava os objetivos de Bonneuil no fato de não se por o acento no sintoma, por isto o atendimento não deveria se caracterizar como tratamento, mas sim como um espaço onde se contemplasse os níveis de realidade e da imaginação. Neste espaço as crianças não deveriam pensar que os adultos se interessam por ela por causa de suas dificuldades, ou seja, trata-se de abrir um espaço para existir outro olhar sobre ela.

A fundamentação desta postura estaria justamente na preocupação de prepará-la para o futuro e sua inserção social produtiva, objetivos também do Colégio Graphein.

Neste modelo a Psicanálise entra como “clareagem”, ou seja, ajuda a pensar alternativas de abordagem da criança que evitam a repetição dos fracassos que ela já vivenciou na família e no social. Para que se opere esta “clareagem” é necessário que haja um sujeito que queira e possa ver e que haja uma luz, segundo Gregorio Devito, membro da equipe de Bonneuil.

Também no Graphein o olhar não é calcado nos sintomas, mas em estratégias para minimizar seus efeitos prejudiciais ao processo pedagógico. Trata-se de pensar formas de aproveitar o cognitivo do sujeito, ajudando-o a diminuir a influência de sintomas prejudiciais a cena pedagógica, ou até, através deles organizar uma forma de entrada para a organização do aprender. Por ex, se uma criança apresenta uma repetição de uma temática ou conduta, muitas vezes é através dela que o pedagógico é introduzido.

Neste sentido todos os momentos são momentos propícios a aprendizagem e não só os momentos na sala de aula. Como a população atendida apresenta dificuldades na sua constituição inicial, problemas na elaboração de conceitos que fundam o processo pedagógico tais como as noções de espaço e tempo, aproveita-se situações extra-classe para se realizarem pontuações e intervenções pedagógicas.

Entende-se que o terapêutico é tarefa dos tratamentos individuais aos quais quase todos os alunos realizam fora da instituição.

A preocupação final é a inserção social deste sujeito de forma produtiva, pensando-o como capaz de conseguí-lo mesmo dentro dos limites que sua estrutura emocional e cognitiva coloca. É este olhar sobre o seu potencial, vendo-o como uma estrutura que pode se movimentar, é que cria um espaço onde advém efeitos terapêuticos, não necessariamente entendidos ou planejados.

Como em Bonneuil, é a noção de trabalho que é mais importante que o da ação terapêutica. Porém, esta ação acontece a todo momento através de vivências com os professores, colegas e funcionários. Observam-se a cada momento efeitos importantes em diversas situações.

Como ex, uma criança com muita dificuldade de limites e de organização sempre atrapalhava o trabalho da funcionária da cantina na hora de comprar merenda, causando brigas, empurrões e choro; várias tentativas sem resultado foram feitas para adequá-lo até que um dia a funcionária olhou bem para ela e disse angustiada:”Você atrapalha meu trabalho e com isto eu posso correr o risco de ser despedida! Sabia disso?” Desde este dia o aluno passou a ter uma melhor contenção de sua ansiedade na fila.

Um efeito de diferenciação estruturante, um corte reorganizador sem ser interpretativo, feito a partir disso que pensamos permear o olhar deste funcionário para a criança que é o de “clareagem”.

Um outro exemplo deste tipo de intervenção é o que ocorreu com um professor manejando uma situação difícil em sala de aula. Ocorriam os primeiros dias de aula numa turma de adolescentes com uma aluna nova; a rotina estava difícil pois os rapazes tentavam trazer assuntos de sexualidade a todo momento entre eles, impedindo a colocação dos conteúdos necessários ; a aluna começa a falar sobre sua experiência sexual, dando pormenores totalmente inadequados ao momento, deixando os rapazes perplexos. O professor não consegue que esta cena pare de se repetir naquele dia, porém, no recreio os meninos vêm até ele e comentam surpresos o que a menina havia descrito. O professor tranquilamente responde: “ Ela recém chegou na turma e parece com muita vontade de falar sobre as mesmas coisas que vocês falam, quer ser amiga, não perceberam isto? “ Eles ficam calados e o efeito é o esbatimento desta temática da forma intensa como estava ocorrendo.

Novamente o efeito é produzido através de uma fala não interpretativa do conteúdo inconsciente que irrompeu na cena, mas através de uma leitura deste lugar da “clareagem”, de um olhar sobre a realidade e não sobre o sintoma.

Outro aspecto importante é o que diz respeito as informações da história pessoal de cada um, dados que são do conhecimento dos técnicos que são responsáveis pela supervisão dos professores daquele aluno e pelo trabalho com os familiares. Apesar de se colocarem algumas informações básicas para o professor sobre o aluno, procura-se apenas focar questões relativas ao funcionamento básico, dados necessários para se estruturar e executar o plano pedagógico individual. Pensa-se com isto, justamente em se preservar o lugar do não terapêutico planejado, deixando que o aluno sinta o impacto do outro, professor ou funcionário, frente as suas condutas.

Os possíveis impactos ou estranhamentos que se diferenciam de uma escuta analítica e também da indignação do leigo comum frente as inadequações deste tipo de criança ou adolescente é que permitem ao sujeito encontrar um lugar novo, um olhar diferenciado sobre eles.

O professor e o funcionário tem a sua atenção voltada para executar sua tarefa e desenvolver formas diferenciadas de alcançá-la, sem necessariamente passar pela mudança de características daquele sujeito. Sem este olhar normatizante deslizam-se novas formas de existência. Os cortes são produzidos na medida em que estes sujeitos produzem estranhamento e são convocados a pensar na posição do outro que os escuta.

Ainda sobre a presença da Psicanálise no pedagógico, a organização das classes de no máximo oito alunos, as classes de polivalência, a não lineariedade dos conteúdos como na escola comum e ao mesmo tempo, a rotina organizada alternadamente como um currículo de escola tradicional, falam-nos de uma tentativa que intermedia a capacidade neurótica e psicótica de lidar com a presença e ausência, o dentro e o fora, a fantasia e a realidade.

No Lugar de Vida , Instituição onde psicóticos são atendidos, coloca-se uma alternância de rotina para favorecer as possibilidades de instauração destes sujeitos introduzirem-se na dialética da ausência – presença, aspecto que este tipo de estruturação ainda não pode organizar, em função da sua nãodescriminação do outro.

No Graphein a alternância é trabalhada para operar maior eficacia, pois apresenta falhas na maioria dos alunos. A rotina instalada a partir das classes polivantes, onde um professor é responsável por vários conteúdos, é uma das formas que procura minimizar os efeitos de cortes abruptos, separações, questões difíceis para sujeitos que não tem ainda suficientemente instalados os recursos neuróticos.

Estas falhas são representadas por sujeitos que buscam ignorar a lei ou apenas desorganizam-se quando esta é colocada, refletindo-se também em condutas inadequadas que perturbam a rotina e a eficácia do uso de conceitos relativos a lógica e a temporalidade. A fragilidade de aquisição destes conceitos dificulta o manuseio das informações pedagógicas naquilo que se constitui as bases da aprendizagem.

Neste sentido é que o Graphein é também um espaço que chamamos de intermediário entre a Escola Terapêutica e a Escola comum: há uma alternância de rotina, com mais exigência que a Escola Terapêutica, sem a rigidez da Escola comum. Uma estratégia para sustentar a fragilidade da dinâmica ausência / presença e ao mesmo tempo, firmar-se na busca de sua melhor operância.

A Psicanálise no atendimento dos pais

Várias formas de atendimento dos pais foi sendo tentado durante o processo de delineamento da estrutura do Graphein.

Tinha-se o modelo da escola tradicional onde predominam contatos grupais, abrindo-se espaço para o individual quando necessário. Nesta forma de funcionar usa-se veículos informativos diversos, sem necessidade de maior vínculo pessoal.

Este modelo não é capaz de sustentar a ansiedade de pais que geralmente já vêm de peregrinações institucionais, feridos narcisicamente pelas dificuldades dos filhos, assustados ou irritados com as limitações que se apresentam na situação de escolaridade.

Pensando nisto, inicialmente adotou-se o modelo da clínica individual onde a transferência dos pais ficava centrada num técnico que além de recebe-los, ficava encarregado de manter um vínculo com os mesmos, acompanhando também o andamento da escolarização do aluno e fazendo a conexão de todas estas informações.

Com o tempo observaram-se situações onde determinadas estruturas familiares provocavam transferências difíceis de serem manejadas por uma só pessoa. Nestes casos muitas vezes o aluno acabava sendo retirado da escola, sem que tivesse necessariamente como causa o processo pedagógico.

Pais que apresentavam um nivel de ansiedade ou de dissociação capazes de causarem situações distorcidas frente a quaisquer palavras ou condutas deste técnico. Como o vínculo era só com ele, os outros técnicos ou direção da instituição ficavam imobilizados para intervir e se o fizessem na situação de crise já não produzia mais um efeito integrador necessário para neutralizar a intensidade dos afetos mobilizados.

A partir da análise destas ocorrências pensou-se numa forma de funcionar de tal maneira que mesmo sendo priorizada uma transferência com um dos técnicos, ficasse estabelecido “transferências lateralizadas” com a Direção ou outro técnico.

Entende-se por lateralização da transferência uma tentativa de duplicar as figuras transferidas, sem provocar uma divisão do papel de cada um. Procura-se criar um vínculo mais forte com um técnico, favorecendo um segundo vínculo que funciona como alguém que se mantém paralelo ao processo e pronto para intervir quando emergir algo excessivamente conflituoso. Aqui traduz-se por “conflituoso”a emergência de conteúdos inconscientes dos pais não possíveis de serem manejados e trabalhados pelo tipo de transferência que cabe neste espaço institucional.

Nas situações mais difíceis estabelece-se uma alternância temporária de intervenção que possibilita acomodação de clivagens, um deslizamento do pulsional que na maioria dos casos reorganiza o vínculo e evita rupturas catastróficas para a criança.

É importante salientar que falamos de uma transferência que não é a mesma do setting analítico organizado para emergir a neurose de transferência. É apenas um vínculo referencial através do qual a Escola procura organizar as questões que são pertinentes a problemática de aprendizagem que o filho apresenta, tentando sustentar um espaço continente de afetos perturbadores a este processo. Observamos que muitas vezes torna-se incontornável manter padrões objetivos da realidade escolar, já que se trata de situações bastante ansiogênicas e mobilizadoras , sem falar nas estruturas frágeis que predominam numa ou em ambas figuras dos pais.

Todas estas questões nos tem provocado reflexões e constantes redimensionamentos de posturas, processo pertinente a construção e aprimoramento de um novo modelo de Escola, também coerente com o “olhar” que situamos como psicanalítico na instituição.

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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