Org: Silvia Leonor Alonso e outras
Editora Escuta, São Paulo, 2008, p. 357-371.
Até alguns anos atrás, nós, os analistas de crianças, podíamos observar, estatisticamente, que as buscas de tratamento na faixa etária em torno dos 5-10 anos eram predominantemente, meninos e, quase sempre, com problemas de conduta (agressividade e agitação no grupo familiar e social), e dificuldades na aprendizagem. As meninas, em menor número, eram trazidas com queixas de fobias, inibições e quando aparecia conduta agressiva, ela quase sempre era referida ao grupo familiar, dirigida principalmente, aos irmãos. As mulheres apareciam em maior número, geralmente após os 18 anos.
Observo
que esta estatística tem modificado: já não predominam
meninos, principalmente na faixa etária de 5-7 anos, bem como, têm
aumentado o número homens que procuram tratamento na faixa etária
de 18-30 anos. Também têm modificado o tipo de queixas trazidas
em relação às meninas, tanto na clinica privada como
na pública.
Mas como chegam estas meninas que agora modificaram os dados estatísticos
da clinica?
Chegam
ansiosas, agressivas, temerosas…mas falam! Discutem diferenças, recusam-se
a calar… Apresentam sintomas na conduta, o que parecia privilégio
dos meninos! Chegam antes de se dizerem mulher…antes de terem corpo de mulher.
Mas já sofrem por sentirem-se feias, apresentam conflitos com o corpo
e rivalidades entre iguais. Chegam com sintomas, com sofrimento. Tomam iniciativa
frente à abordagem de meninos e deixam alguns pais assustados e outros
inconscientemente satisfeitos!
Falam muito, bem mais do que antes desenhavam.
Foi-se o tempo em que a analista de crianças “descansava” numa sessão com uma menina, na qual se ficava desenhando, confeccionando roupinhas de bonecas… Enquanto os meninos nos cansavam corporalmente, com jogos de bola e sessões movimentadas…
Agora as meninas também jogam bola, movimentam-se intensamente e constróem figurinos de bonecas, mas nos jogos de computador, onde há agitação mental e grande mobilidade de ação.
O jogo de futebol não surge como resistência ao aparecimento das mudanças corporais da puberdade, como antes, quando as meninas faziam sintomas de inibição nesta etapa. O futebol surge aos cinco, seis anos, indiscutivelmente, sem nenhuma questão de ser ou não pertinente ao feminino.
E
perguntam…E a analista precisa pensar muito e pensar rápido!
Mais do que pensar, a analista precisa rever paradigmas!
Continuamos escutando as produções e acompanhando as mudanças: em vez de costurar roupas para as bonecas concretamente, agora ´costuramos virtualmente e rapidamente, um figurino completo, desde maquiagem e combinações de jóias, com discriminações sutis de rímel e cor da sombra para combinar com a cor do vestido. Navegamos junto na internet e nas possibilidades identificatórias…. A exigência feminina é outra e se metaforiza, como demanda o universo atual, na imediatez e variedade dos fazeres.
A angústia de extrair pedaços do corpo da analista para identificar-se, se resignifica com uma gama diversificada de perguntas e questionamentos, muito mais intensos que nas outras décadas. Falam, brigam, movimentam-se: antes de qualquer coisa, sinto que são interlocutoras prazeirosas e desafiadoras da clinica psicanalítica!
Porém, os sintomas de conduta nestas meninas denunciam que suas intensidades pulsionais não estão mais sendo possíveis de serem conduzidos ao recalque como normalmente as famílias e a nossa cultura demandavam que ocorresse!
E a analista se pergunta: O que significa isto? Quais outras derivações possíveis para a agressividade que não apenas o recalque, pensando esta posição enquanto derivação de uma posição fálico-castrada a ser elaborada?
Ao escutá-las vou transitando pelos textos freudianos que organizaram meu pensamento sobre a sexualidade infantil, o Complexo de Édipo e suas possíveis elaborações na sexualidade feminina.
Tenho presente que a partir da instalação do complexo de castração (Freud, 1925) é que são colocadas as definições de caminhos para a menina, quais sejam: o da inibição da sexualidade (frigidez e/ou neurose histérica), ou o “complexo da masculinidade” ( posição fálica ou até homosexualidade), ou a virada libidinal em relação ao pai e o desejo de ter um filho dele, que constitui a saída para a feminilidade. Neste texto (1925) fica estabelecido que o desejo do filho é uma forma exclusiva de resolução da sexualidade, a única saída para alcançar a feminilidade.
“Seu reconhecimento da distinção anatômica entre os sexos força-a a afastar-se da masculinidade e da masturbação masculina, para novas linhas que a conduzem a feminilidade. […] Ela abandona o desejo de ter um pênis e coloca em seu lugar o desejo de um filho; com esse fim em vista, toma o pai como objeto de amor. A mãe se torna objeto de ciúme. A menina transformou-se em uma pequena mulher.” (Freud, 1925, p. 284)
Num momento posterior, tendo feito este vínculo diferente com o pai, fortalece-se a identificação com a mãe e se inicia momentos de reparação dos ataques que lhe foram feitos.
Afirma Freud que as pulsões ativas presentes na menina anteriormente ao complexo de castração são de natureza “essencialmente masculina”. A menina precisaria fazer o recalque disso que ele denomina de ´sexualidade masculina´, passagem que ocorre com o surgimento do desejo de filho, ou seja, quando ocorre a equivalência filho-falo.
Porém, a hegemonia do falo/pênis na teoria freudiana tem sido questionada, conforme muitos autores da psicanálise, pois ela deu suporte a desvalorização preconceituosa das qualidades intelectuais e éticas do sexo feminino.(Alonso; Fuks. 2004, p. 129)
Enquanto faço estas reflexões nas quais penso sobre as possíveis e novas derivações do sintoma ‘agressividade’ das meninas atuais, via análise, encontro um livro que reúne crônicas de Clarice Lispector escritas na década de 1950-60, textos escritos para ‘aconselhar’ as mulheres de sua época. (Trata-se de um vasto material no qual Clarice, sob o pseudônimo de Helen Palmer ou Ilka Soares, discorria sobre temas que versavam sobre a arte de ser mulher. O tema preponderante era “ sedução e feminilidade” e as “ receitas” tinham um único propósito: conquistar o bem amado.)
Vou percorrendo alguns títulos e recortando alguns de seus ‘conselhos’, pensando no sintoma de agressividade dessas meninas:
[…] “ A mulher dominada pelos nervos não pode ser uma mulher bonita, ou, pelo menos, não tão bonita como poderia ser. Se você não tem força suficiente para controlar-se e controlar seus nervos, procure então um médico, trate-se, obedeça-lhe as indicações, não apenas tomando remédios mas descansando bastante, alimentando-se de forma regular e sadia. É preciso que você faça isso. É indispensável para a conservação de sua felicidade conjugal e do homem que você ama.” (p.63)
E eu penso nos ‘nervos descontrolados’ das minhas pacientes meninas…o que não está sendo dito por elas? O que não se resolve com remédios?…E a escritora, mulher revolucionária para seus tempos, segue aconselhando…
“Que tolas são as mulheres que ignoram serem elas as que mandam e governam! À primeira vista, parece que o homem manda, mas é sempre a mulher quem decide. È também ela a que conquista! […] Por isto digo: Tola, não lutes por impor tua vontade, pois, ao final, tudo dará na mesma, e “ele” pensará como tu pensas. Napoleão era um gênio, ninguém ousava falar em sua presença; porém na presença de Josefina, Napoleão se punha de joelhos. Não grites para impor tuas idéias: atingirás o seu objetivo com bondade e ternura…Guerreando, jamais a mulher ganhou uma batalha…” ( Lispector, p. 85)
Mas as meninas da década 2000 estão ‘guerreando’…
“ Alguém já disse, certa vez, que para ser feliz, uma mulher necessita de apenas duas coisas: uma boa saúde e uma memória ruim.[…] […] Lembre-se, pois, do nosso conselho e procure melhorar a saúde – e piorar a memória.” (Lispector, p. 60)
Interrompo minhas leituras e reflexões sobre os conceitos freudianos a respeito da posição feminina e os aspectos sócio-culturais implicados com estes conceitos e volto-me para tentar pensar numa possibilidade de ampliá-los à luz de efeitos simbolizantes de diferentes momentos da mesma cultura, mas sou tomada pelo temor de ser considerada uma analista com insuficiente conhecimento da teoria, ou ainda, como bem comenta Emilce Dio Bleichmar (Bleichmar, p. 30) nos seus estudos sobre o feminino, ser considerada uma autora partidária de posições feministas ou culturalista.
Mas, recorto desta mesma autora, um comentário que me tranqüiliza e reconforta e que não me deixa só neste tipo de reflexão, no qual ela afirma ser um engano metodológico e epistemológico posturas que pretendem isolar o desenvolvimento da subjetividade e da sexualidade humana, dos sistemas simbólicos de atribuição de significados nos quais são instituídos. (Bleichmar, p. 35)
E volto para 2007, onde sou a analista destas meninas que vivem e viverão transformações que talvez, os adultos desta geração venham a ter limites para acompanhar. Decido voltar para minha clinica, recorrendo a Piera Aulagnier quando conceitua “teorização flutuante”: “a prática sempre foi e nunca poderá ser senão teórico-clinica, daí a necessidade da ‘teorização flutuante’.” (Aulagnier, 1984, p.16)
Enfim, são estas ‘meninas’ de 2007 que devo escutar! O que elas me dizem em análise?
Partindo da queixa, ‘meninas agressivas’, sei que isto pode não representar um sintoma, mas apenas uma expressão do incômodo social frente estas condutas; mesmo sendo sintoma, não me cabe uma escuta interpretativa generalizadora, pois um sintoma pode ser representativo de inúmeros momentos constitutivos do psiquismo.
Também entendo que não cabe a análise um trabalho de inibição deste sintoma, mas sim, de interpretação ordenadora, um trabalho de ligação a partir da clinica com cada sujeito. Faz-se necessário partir para as especificidades e é sobre elas que podemos pensar saídas que contemplem a singularidade.
Peço que me acompanhem na reflexão sobre estas especificidades, entendendo-as enquanto recortes de um material de análise que os sustenta:
Por exemplo, o que faz com que uma menina de cinco anos, apresentada pelos pais como ‘briguenta’, possa perguntar a analista: “ Porque na sinagoga os homens ficam separados das mulheres e num lugar melhor do que o delas?” E se trata de uma menina meiga, que gosta de vir a sessão com uma roupa que tem uma pequena bolsinha aderida na calça, bolsinha na qual ela traz muitos apetrechos que vai juntando e cuidando enquanto joga futebol. Como escutar esta questão? Inveja do pênis? Confronto natural das diferenças? Confronto com uma questão sócio-cultural? Uma dificuldade de perceber e aceitar as diferenças sexuais?
Nesta situação entendo que as mudanças na normatização de condutas a respeito de gênero permitem que esta menina explicite suas queixas dessa forma, havendo uma autorização da mãe e do ambiente sócio-cultural, talvez inconsciente, para que ela manifeste suas reivindicações, suas discordâncias com o lugar feminino que lhe é apresentado.
E a menina reage! Pergunta e faz questão, cobrando uma resposta e brigando em transferência, como se culpasse as mulheres que lhe são apontadas como modelos identificatórios! “Por quê?”
Como trabalhar esta angústia da menina? Mesmo que um trabalho analítico pensasse em seguir este raciocínio de colocá-la na falta, ajudando-a a deslizar para um lugar do desejo masculino, penso que isto não mais teria contexto para efetivar-se.
O sintoma de agressividade nesta menina não parece ser uma inveja fálica, mas uma cobrança de um outro ‘lugar’, um desejo de diferenciar-se! É evidente que ela precisará percorrer caminhos sublimatórios, mas precisa-se trabalhar esta força pulsional pensando em caminhos derivativos diferentes do que só o recalque. O que não me parece adequado são condutas analíticas interpretantes e invasivas.
Outra ‘novidade clinica’: uma outra menina ‘briguenta’, agitada, impaciente para qualquer tipo de espera, cresce um pouco e não teme expor-se em iniciativas frente aos meninos e falar sobre isto, como por exemplo, contar que deu um anel de compromisso para um menino do qual gosta; porém, não entende e não aceita quando o menino não aceita a aliança e diz não querer mais ser seu amigo. E agora, o que pensar? Se fossemos na linha de pensá-la uma menina fálica a entenderíamos como quem toma o lugar do menino na iniciativa. Em relação à resposta do menino que se nega a aceitar, poderíamos tomá-lo como se recusando a ficar na posição passiva.
Porém, entendo ser importante ampliarmos a questão pensando não só numa atitude de recusa da diferença sexual, mas uma dificuldade desta menina em atravessar uma castração ontológica, conforme conceitua Silvia Bleichmar num de seus seminários no qual discute a questão da ética e o superego : o que diferencia o desejo do sujeito do desejo do outro e que não tem a ver com questões do feminino-masculino. A autora propõe que a ética é constituída antes do término do Édipo na infância e não o seu resultado.
Neste último exemplo, entendo que o menino recusou-se a ser ignorado enquanto um outro desejante.
A base da ética, o transitivismo moral, conduz a capacidade de identificação com a dor do semelhante. A renúncia ao polimorfismo perverso é o encaminhamento até a ética, por que se renuncia pelo amor do outro e por respeito a si mesmo, propõem Silvia Bleichmar.
Segundo suas palavras:
“ …hoje eu defendo a idéia de que toda possibilidade de relação amorosa na alteridade implica castração ontológica. É impossível amar se não se está sobre a base da imcompletude. Isto é o que faz entrar em crise o paradigma freudiano de que é uma eleição narcisista do objeto.”
Passivo seria o sujeito para qual a única saída é a busca de voltar a ser o que foi, ou seja, ser atendido por um outro, com o qual volta ao passado. Sílvia Bleichmar coloca a situação como questão de haver ou não uma castração ontológica: em ambos, homem ou mulher, se não há reconhecimento do que lhe falta, não pode amar o outro. E o que lhe falta não é pênis ou vagina, mas algo mais profundo da alteridade e por isto pode se dar também na homossexualidade. Para a autora, a diferença anatômica é uma metáfora, um paradigma da época de Freud, porém, não é a única maneira de reconhecimento da alteridade, da diferença:
“ O que é passivo ou ativo? …[…] digo sempre que o passivo nada tem a ver com a sexualidade feminina. Mas eu creio que a sexualidade feminina passiva é a da época de Freud…[…] Não é de nossa época, na qual a mulher participa em pé de igualdade na relação sexual, e mais, busca e se queixa de que o homem não quer.” […] “ Freud tenta sair da categoria masculino-feminino com o ativo-passivo. É verdade que era o fantasma contemporâneo de sua época, no qual o passivo no homem é ameaçador e na mulher o ativo, na medida em que a sociedade condena as características ativas na mulher.
Acrescenta:
“ …estou fundamentalmente preocupada que, nós analistas, não fiquemos engessados no tema da diferença anatômica;…. que não se reduza o tema da castração a problemática genital.[…eu tento desgenitalizar a questão e restituir-lhe uma função universal que não esta que ficou designada por modos ideológicos.” Segue dizendo: “ Uso o termo ´castração ontológica´ para sair da questão de sempre se remeter ao pênis, a genitalidade e a diferença anatômica.”
Esta autora também diferencia esse conceito do conceito de fixação fálica:
“ Poderíamos dizer que é uma permanente metonimização do desejo em relação ao fantasma de completude fálica. Falo de uma impossibilidade de subtrair-se do fantasma da completude e, neste sentido, o sujeito vive atrás de objetos ou de situações que lhe dão a completude. …[…] Em vez de falar em fixação fálica, prefiro falar em renúncia a imcompletude.”
Segundo ela, a psicanálise é a única teoria que pode explicar a ruptura entre sexualidade e procriação. Porém, diz ela, muitos psicanalistas estão atados para explicar este fenômeno porque raciocinam a partir de uma teoria instintivista: não se pode explicar a maternidade somente pela equação pênis-filho, quando a mulher tem tantos objetos substitutivos simbólicos da castração ontológica, desde seu próprio corpo até seu trabalho.
Seguido minha reflexão, recorto de minha escuta clinica outro exemplo: meninas ‘briguentas’ que apresentam, de forma exacerbada, dificuldade em aceitar a diferença entre ser menina e ser mulher, ser criança e ser adulto.
São meninas que hoje têm aumentadas a habilidade verbal e o confronto nos seus discursos são confrontos imperativos que conseguem destituir a autoridade, principalmente a materna. Verifico nestes casos, mães que parecem não ter força e constância para se fazerem cargo do embate competitivo e se deixam seduzir pelo discurso rico em informações e lógica, abandonando seu lugar de contenção e mando. Não conseguem olhar através destas demonstrações de lógica verbal das filhas e ver que há um excesso de informação não processada, ‘encantando-se’ com uma pseudo-maturidade das mesmas.
Pensando nesta especificidade que foca o ‘encanto’ das mães
com a demonstração de discursos lógicos das filhas, recorto
mais um ‘conselho’ de Clarice Lispector, ‘conselho’
que penso ainda funcionar como um fantasma de mulher ideal, contra o qual
algumas mães ainda se debatem e talvez, inconscientemente ‘gozem’
ao perceberem a aparente ‘recusa’ das filhas, interpretando a
agressividade como fuga de uma posição passiva e masoquista:
“Os tempos modernos trouxeram a emancipação da mulher em quase todos os campos. Eis um grande bem. No entanto, muita confusão se faz em torno disto e o que se vê é que muitas representantes do sexo feminino entendem que ser emancipada e ter personalidade marcante é imitar os homens em todas as suas qualidades e defeitos. A agressividade, o hábito de tomar atitudes pouco distintas em público e muitas outras coisas vêm prejudicando a beleza da mulher e tirando-lhe o predicado que mais agrada os homens: sua feminilidade. Inteligência e senso comum devem ser suas qualidades imprescindíveis à mulher. A mulher deve possuir senso de humor e dignidade e deve resguardar sua individualidade. A única qualidade que a mulher não precisa ter é…lógica.”( Lispector, p.100)
Em síntese, a ‘mulher ideal’ da década de 50 não devia ser ‘lógica’ e muito menos ‘briguenta’! Um mandato que não parece estar funcionando no modelo a ser transmitido para estas meninas! As mães ficam extasiadas com arrazoados lógicos e cedem as pressões que, às vezes, são fálicas. Desta forma, talvez defendendo inconscientemente as filhas de uma saída masoquista, ao não fazerem diques para a agressividade, também não conseguem ajudá-las a se dirigirem a saídas que levam ao erotismo feminino.
Algumas dessas mães também manifestam condutas simétricas às de suas filhas, impedindo-as de se diferenciarem, o que poderia ser feito, normalmente, via expressão da hostilidade, caso estes sentimentos da menina pudessem ser suportados pela mãe. Penso que esta dificuldade das mães de suportarem a agressão e estabelecerem a diferenciação também se deve ao fato da mulher, neste momento da cultura ocidental, estar enfrentando dificuldades mais acentuadas no que diz respeito a algumas questões fundamentais: estão fragilizadas frente às demandas do social que cobra aparência corporal de juventude eterna, travam luta ferrenha para impor-se no mercado de trabalho e enfrentam um social que também, em termos de existência, fez-lhe perder as ‘certezas’ identificatórias. Enfim, parece que lhes é muito difícil, depois de tudo isto, manter ainda a firmeza necessária frente aos embates competitivos das filhas meninas. Elas falham, justamente quando as filhas atravessam movimentos psíquicos que lhes demandam muita segurança identificatória.
Desta forma, este tipo de função materna favorece que irrompam formas de expressão hostis próprias da sociedade contemporânea, dando lugar a cenas de depredação mútuas nas relações entre as mães e as filhas meninas. Nestes casos, presenciamos o narcisismo favorecendo via livre para a hostilidade inconsciente e, ao mesmo tempo, a falta de relações amorosas que possibilitem a desidentificação fálica.
Constato outros exemplos clínicos de situações que revelam a desestabilização narcísica na relação menina- mãe e que acabam dificultando as meninas no trânsito entre a falicidade e o erotismo feminino. Tratam-se de situações onde se destaca a fragilidade em novos papéis sociais nos quais as meninas ‘briguentas’ e suas mães estão incluídas.
Uma menina de sete anos solicita ser cuidada e reclama mais presença da mãe que trabalha, colocando uma solução, numa sessão conjunta com a mãe, entre agressão e lágrimas: “Mãe, casa com teu namorado porque assim vocês vão ter mais dinheiro juntos e um de vocês poderá me buscar na escola e eu não precisarei voltar na perua que detesto!”
Esta menina parece solicitar maiores cuidados maternos e que lhe seja possibilitado uma entrada gradativa e menos abrupta do elemento ´terceiro-estranho’, nesta cena, simbolizado pela “ perua escolar” que a desorganiza.
Este pedido denota fragilidade nas primeiras identificações, aquelas que sustentam uma base narcísica e não parece ser uma questão pertinente a identificações secundárias. Neste pedido a diferença sexual não é importante, mas a função parental enquanto cuidado.
Outro
exemplo de uma menina de cinco anos que chega feliz na sessão, dizendo
que agora que a mãe vai trabalhar vai ser melhor porque a família
vai ter mais dinheiro e os pais vão poder ficar mais tempo com os filhos.
O raciocínio desta criança é que este casal vai poder
melhor se dividir nos cuidados dos filhos, ou seja, há uma demanda
de cuidados.
A nova constituição de famílias ainda se apresenta instável, dando espaço para a insegurança e pouca contenção narcísica das crianças, o que também entendo como interferindo no aumento dos sintomas na conduta e incrementando dificuldades nos caminhos sublimatórios da pulsão.
Talvez seja mais adequado falarmos em identificação com os progenitores, período onde são organizadas as primeiras diferenciações entre eu e o outro, gênese verdadeira do ideal de ego; momentos onde a identidade de homem e mulher são sustentadas por figuras de apego, cuidado e reconhecimento narcisista (Dio Bleichmar, 1985, p. 58)
Este período cria a matriz dos vínculos posteriores, tanto sexuais como amorosos, mas estas experiências não são significadas pela criança como sexuais. (Bleichmar, p. 59) Nesta relação dual, qualquer terceiro será considerado um rival, não necessariamente o pai. A menina não está numa posição masculina frente a mãe, como sustenta Freud (1931) em “ A sexualidade feminina”, mas apenas aspira ser a exclusiva, a primeira no amor da mãe se for ela que dispensa os cuidados básicos.
A agressividade das meninas em transferência:
Na minha prática clinica observo que o conteúdo destes confrontos agressivos, competitivos com o qual estamos lidando, também em transferência, não nos fala apenas de um sintoma da menina de recusa a aceitar a falta enquanto diferença sexual.
Pensando desta forma, a tarefa transferencial se faz mais difícil, já que não estamos falando em resolvê-la com interpretação sobre a ‘falicidade’. Antes disso, será ‘em transferência’ que terão que sentir seu lugar de criança e de menina; em transferência, terão que poder atacar, contestar e invejar, bem como, sentir que esta força pulsional não é perigosa, mas sim, que se trata de uma força que pode encontrar diferentes derivações, uma força que busca significação, sem que se perca o lugar de crianças, sem que perca o lugar feminino! Há que também se pôr diques nesta agressividade, mas ajudando a menina a descriminá-la em toda a sua complexidade.
Penso que esta problemática, no momento atual, está exacerbada porque a diferenciação entre eu e o outro tem sido dificultada pela nossa cultura, na qual predominam formas narcísicas de coexistência, onde os novos padrões sociais oferecem pouca consistência na passagem primeira de valores e organização das leis e onde as funções parentais se encontram em importantes transformações devido a mudanças nos papéis entre o casal e nas relações com o mundo do trabalho.
Trata-se, também, de atravessar a falta ontológica, anterior a diferençiação sexual. Percebo que a diferença de gênero não se coloca como a questão mais importante nestes sintomas de ‘agressividade’, mas sim, a diferença entre eu e o outro, que possibilita a troca amorosa e a produtividade eficaz, não só a competitiva.
Em muitas situações sintomáticas está-se falando destas falhas nas relações contemporâneas e não como um atributo necessário a ser cultivado apenas pelo sexo feminino, como Clarice Lispector, tenta colocar nos seus ‘aconselhamentos’ para as mulheres da década de 50. Em 2007, seus ‘conselhos’ são necessários e valem para ambos os sexos:
“A arte de discordar consiste, especialmente, em não agredir…[…] Não seja abrupta com sua opinião. Se você vai discordar, suavize sua frase com um “sim, de algum modo você tem razão, mas também acho que…” . E na hora de dizer o “mas” , não use sua voz pior. Outro modo de suavizar é, depois de dar sua opinião, acrescentar: “ Que é que você acha disso?” (Lispector, 31)
Continuando minha reflexão, cito psicanalistas estudiosos atuais da
Histeria e da Sexualidade Feminina que também constatam a necessidade
de se repensar alguns conceitos relativos ao feminino, no caso, diferenciação
entre feminino e histeria, entre eles, Silvia Alonso e Mário Pablo
Fuks.
Nesses caminhos, também podem ser produzidas simbolizações que não são apenas deslocamentos substitutivos, produções simbólicas de outra ordem, com outra lógica. Dessa forma, a passagem para um regime de intercâmbio dos objetos parciais (1917) implica processos de fluidez, transmutação ou transformação pulsional que levam a um desenvolvimento e expansão do erotismo feminino por vias que não se fixam necessariamente em um objeto e nem requerem o recalque como destino da pulsão. (Alonso; Fuks, 2004, p. 245)
Penso que um trabalho de revisão e mesmo de desconstrução de alguns conceitos da teoria freudiana relacionados com o feminino e o masculino se faz importante enquanto contribuição à atualidade da psicanálise quando não se abandona o método que a possibilitou ser organizada. É este método que possibilita que continuemos a trabalhá-la.
Tento escutar estas ‘meninas briguentas’ e o que elas colocam de enigmas para serem resolvidos, sem esquecer seus fantasmas próprios e sem excluir os significantes culturais que podem redimensionar a noção de passivização da pulsão. Precisamos ajudá-las a capturar e elaborar as diferenças subjetivas, se apropriarem destas diferenças e trabalharem na margem de transformação que estes significantes lhes permitem, tarefa que nos cabe enquanto psicanalistas.
BIBLIOGRAFIA:
ALONSO, Silvia Leonor; FUKS, Mario Pablo. Histeria. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2004.
AULAGNIER, Piera. (1984) O Aprendiz de Historiador e o Mestre-Feiticeiro: do discurso identificante ao discurso delirante. São Paulo, Escuta, 1989.
BLEICHMAR,
Silvia. Seminário sobre Ética. São Paulo, dezembro de
2006.
__________________ Paradojas de la Sexualidad masculina. Buenos Aires, Paidós,
2006.
BLEICHMAR, Emilce Dio. O feminismo espontâneo da histeria- estudo dos transtornos narcisistas da feminilidade. Porto Alegre, Artes Médicas, 1988.
______________________ La sexualidad Feminina.
FREUD, Sigmund.(1905) Três Ensaios da Teoria Sexual. ESB, vol. VII.
_______________ (1915) Os instintos e suas vicissitudes.ESB, vol. XIV.
_______________ (1917) As transformações do instinto exemplificados no erotismo anal. ESB, vol. XVII.
________________ (1923) Organização Genital infantil. ESB, vol. XIX.
________________ (1925) Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica dos sexos. ESB, vol. XIX.
_________________(1931) A sexualidade feminina.ESB, vol. XXI.
LISPECTOR, Clarice. Crônicas sobre o Feminino. Rio de Janeiro, Editora , 2006.
Como entrevistar um paciente? O que perguntar? Utilizar um questionário fechado ou deixá-lo falar livremente? Em que momento e como interrompê-lo? Como observar seu estado psíquico e emocional? O que fazer se ele chorar? Esses são exemplos de dúvidas comuns no dia a dia não apenas de estudantes de medicina, mas de muitos profissionais da área.
A partir dessas e de outras questões observadas pelos autores em sua prática como professores da disciplina de Psicologia Médica na Universidade Federal de São Paulo, surgiu a ideia de escrever este livro, que reúne a teoria da área a exemplos práticos, proporcionando ao estudante a oportunidade de pensar sobre o fazer da medicina e a importância da relação médico-paciente no processo saúde-doença.
SUMÁRIO
PARTE I – VISÃO GERAL
1. A medicina da pessoa
PARTE II – COMUNICAÇÃO E RELAÇÃO
2. Modelos de comunicação e comunicação em saúde
3. Comunicação em saúde e os meios de informação e comunicação
4. Desenvolvimento das capacidades comunicacionais
5. A dinâmica vincular na relação médico-paciente
PARTE III – A ENTREVISTA
6. A dinâmica da observação e registro
7. Fases e técnicas de entrevista
8. O exame físico do paciente: aspectos psicológicos
9. O exame psíquico
PARTE IV -CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA E SUBJETIVIDADE
10. Introdução à subjetividade humana
PARTE V – O CICLO DE VIDA E MORTE, FASES E DINÂMICAS,
CRISES, DESADAPTAÇÕES E PSICOPATOLOGIAS E ASPECTOS
INERENTES À RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
11. O ciclo da vida e da morte: introdução
12. Gestação, parto e puerpério
13. A infância: introdução
14. A infância: especificidades
15. A puberdade e a adolescência
16. A idade adulta
17. A terceira idade: ponto final?
18. A morte na cultura, nos hospitais, no indivíduo
PARTE VI – O PROCESSO DE ADOECER
19. O adoecer como processo
20. Reações e crises
21. A família e o adoecer
PARTE VII – DILEMAS E SITUAÇÕES CRÍTICAS
22. A ética e seus dilemas
23. Situações e relações difíceis
24. Comunicação dolorosa
25. Sobre os relatórios de entrevista
Para maiores informações acesse o link: http://www.grupoa.com.br/site/biociencias/1/20/24/6501/6502/0/psicologia-medica.aspx