O que está acontecendo com a Clínica do Autismo?

Convidada para comentar o texto da colega Cláudia Perrone sobre ‘A polêmica do Autismo na França‘, penso poder contribuir historiando aspectos do meu percurso nesta área de trabalho.

Frente a um bebê que não retorna o olhar para o adulto que ocupa a função materna, eu, enquanto psicanalista no ano de 2012, ainda terei meu foco de observação e intervenção nos aspectos relacionais desta criança e seu meio ambiente. Mas, o que mudou e o que permanece na minha visão clinica sobre o tema ‘Autismo’, desde quando iniciei minha formação no final da década de 70?

Continuo mantendo-me atenta as informações, mesmo de áreas diferentes de conhecimento, sempre em busca de avanços e soluções para os entraves da constituição do psiquismo. Frente a um sujeito que me convoca a pensar, abandono pensamentos cartesianos e mergulho no mundo de incertezas, próprio dos desafios da física quântica, entendendo que a complexidade do desenvolvimento humano assim o exige. Para além desta posição que considero ética e em sintonia com meu lugar de psicanalista, independente de época, tenho a convocação da contemporaneidade e seus novos campos de pesquisa com suas respectivas descobertas. Neste momento, manter a Psicanálise dissociada de outros campos do conhecimento faz parte apenas das minhas tarefas acadêmicas.

Olho para esse bebê, acima mencionado, discutindo-o em equipes multidisciplinares, estratégia de tratamento que julgo indispensável no campo das patologias que ficam fora da neurose. Enquanto psicanalista, sofro hoje o estigma de pertencer a um grupo de profissionais que por longo tempo trabalharam a partir de uma única hipótese clinica: ‘a mãe geladeira‘ (Leo Kanner, 1950). Ainda me penitencio pelos olhares culpabilizantes que lancei às mães de crianças autistas, posição advinda de minha formação inicial, quando a psicanálise e a neurociência funcionavam dissociadas.

Enquanto participante de equipe multidisciplinar, compartilhamos algumas conclusões:

A genética não é o destino, exceto em casos extremos. As descobertas da neurociência reforçam o conceito de singularidade psíquica, eixo central da psicanálise. Conceitos como a plasticidade cerebral (o cérebro não seria um órgão estático e sim, evoluiria durante a vida, guardando as marcas da experiência vivida) e a epigênese (tudo que não é determinado pela genética, isto é, que corresponde às modificações transmissíveis e reversíveis das expressões dos genes) revelam que a determinação genética não seria maior que a determinação ambiental ou psíquica, mas exigem uma articulação entre elas. Desta maneira, não herdamos definições e sim disposições para cumprir funções segundo as exigências do meio ambiente que nos recebe; tal modelo etiológico passa a admitir a complexidade e as potencialidades além das causalidades, e a pensar a ação conjunta da herança genética e cultural, da situação singular, da história dos conflitos humanos, das condições histórico-sociais. Apesar de tudo isto, as pesquisas neurocientíficas e as observações clinicas dos psicanalistas confirmam igualmente a relevância da maternagem primária e do ambiente humano inicial sobre o bebê.

Mas, o que vemos entre os profissionais é apenas um ‘engatinhar’ de diálogo entre os saberes, mesmo que esta troca de informações seja uma urgência da clinica contemporânea. Surgem divergências mais intensas entre métodos e técnicas e mais do que nunca, uma cobrança de resultados, que nem sempre são entendidos e aceitos, principalmente porque são analisados a partir de diferentes prismas conceituais.

Temos muitos esforços sendo feitos por colegas, entre eles a Maríe Christine Laznik, psicanalista francesa, estudiosa do diagnóstico e tratamento precoce do autismo. Ela, juntamente com muitos outros colegas do mundo todo, inclusive do Brasil [¹] , tem trabalhado no sentido de mostrar a necessidade da cooperação entre as áreas e da importância de todas as informações conjuntas no aprimoramento de nossos dispositivos terapêuticos, a partir de pesquisas e capacitação de profissionais para detecção precoce.

Graças a mapeamento genético e exames complementares precoces, sabemos, diz ela, que existem casos de crianças portadoras de uma grave doença genética que podem apresentar um recesso autista temporário. Mapeamentos podem indicar fragilidades específicas e o diagnóstico precoce abre possibilidades para as intervenções e contribuições psicanalíticas. O atendimento precoce de pais e bebês permite modificar o curso do desenvolvimento, fazendo emergir a vida pulsional e fantasmática. Ainda que não se possa reduzir a subjetividade à genética e a neurociências, é possível saber, por exemplo, que tipo de condição subjetiva participou para que aquele cérebro pudesse ter tido aquele tipo de alteração. Um dos exemplos de contribuição foram os estudos multidisciplinares acerca do ‘manhês’ hoje comprovado como elemento impactante na interação molecular, fundamental na ativação de circuitos associativos.

Nós, psicanalistas, podemos continuar focando nosso olhar sobre a díade-relacional e trabalhar nesta direção; isto não impede que participemos das descobertas que podem nos ajudar a entender e trabalhar melhor sobre este fenômeno, como por exemplo, saber quais os impactos das moléculas liberadas durante essa relação e quais os circuitos associativos que são ativados por ela. Especificidades de nossas intervenções, mesmo incluindo conceitos de outros saberes, podem trocar contribuições e vice-versa.

Entendemos que movimentos como este ocorrido na França, também ocorrem no Brasil e no mundo todo; em parte, representam novas formas de subjetivação, nas quais o ser humano prioriza a rapidez de mudanças, secundarizando a reflexão e o aprofundamento sobre o seu existir. Na clínica, somos confrontados a responder com novas abordagens metapsicológicas ao sofrimento causado pelo ‘excesso’ pulsional. Mesmo sabendo que as descobertas na área bioquímica tem contribuído expressivamente para novos e eficazes tratamentos da doença mental, ajudando este novo sujeito a lidar melhor com seu sofrimento, presenciamos o seu uso indevido da medicalização em função da indisponibilidade deste mesmo sujeito em lidar com a dor da própria existência. Neste sentido, o repúdio ao ‘pensar’ da psicanálise não representa um ato político isolado, mas uma reação deste novo sujeito que tem muita pressa para se livrar do seu sofrimento, muitas vezes necessário para seu crescimento pessoal, principalmente porque o social lhe cobra esta negação, assim como lhe cobra a negação do envelhecimento e da morte.

Porém, como psicanalista, não posso deixar de me responsabilizar pela parte que me cabe neste movimento de rejeição à psicanálise. Certamente, também fizemos por merecer, enquanto mantivemos nosso pensamento enclausurado em raciocínios cartesianos, desfrutando do poder transferencial que tínhamos na sociedade do século passado.

Enquanto clinica, continuo escutando a singularidade, tentando contribuir para que os sujeitos encontrem os caminhos que demandam. Avanço minha atuação clinica participando de equipes multidisciplinares e intervindo na formação de diferentes profissionais. Fora do setting clínico individual, acredito na eficácia da intervenção via instituição e dos efeitos subjetivantes deste trabalho. Ainda, trabalhando com a clinica do ‘excesso pulsional’ da pós-contemporaneidade, aposto no conceito de ‘acontecimento’, mesmo dentro da compulsão à repetição. Tento conversar com os diferentes saberes e práticas, adaptando o discurso psicanalítico para que ele produza sentido e atinja colegas de outras áreas.

Neste momento, sinto-me fazendo um trabalho de ‘formiguinha’. Lembro, porém, das palavras ditas por Raquel Soifer, para uma colega, passeando com ela no jardim de uma casa de repouso em Buenos Aires, onde estava pouco tempo antes de sua morte: “Sabe Amélia, a psicanálise fez muito pouco para o mundo! Mas o que ela fez foi tanto!!!”

[¹] “Psicanálise com crianças: clinica e pesquisa”, organizado por Rogério Lerner e Maria Cristina M. Kupfer, sintetiza resultados de uma ampla investigação feita no Brasil para promover a detecção precoce de patologias mentais graves, entre elas o autismo; vários outros colegas e equipes foram envolvidos, inclusive a Clínica Lidia Coryat de Porto Alegre. A contribuição destes psicanalistas e suas equipes repercutiram de forma muito importante nas equipes multidisciplinares de saúde mental da infância.

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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