Pediatria e Saúde Mental – Implicações Frente às Mudanças do Século XXI

Capítulo: Importância e urgência de transdisciplinaridade

 

Coordenadora:
Denise de Sousa Feliciano
Editora Atheneu, 2024

Importância e urgência de transdisciplinaridade

Vera Blondina Zimmermann – Psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE, Doutora em Psicologia Clínica/ PUC/SP, Professora e supervisora na residência de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Departamento de Psiquiatria Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental da UNIFESP, Coordenadora do Curso de Aperfeiçoamento Clínica Interdisciplinar da Primeira Infância do Instituto SEDES SAPIENTIAE/SP

Mesmo estando no século XXI, ainda hoje a ciência organiza os conhecimentos usando o pensamento cartesiano (conclusões a partir de relações simplistas de causa e efeito), reforçando uma posição narcisista dos diferentes saberes. Proliferaram-se as especializações de tal forma que temos o médico do pé esquerdo e o médico do pé direito, ambos com importantes e diferentes conhecimentos, mas com uma especificidade que pode dificultar os profissionais a produzir uma visão mais ampla do ser humano, digna da sua complexa natureza. 

“A ciência produziu campos disciplinares cada vez mais rigorosamente delimitados como se fossem, e eram, territórios inexplorados demarcados e apropriados pelos seus desbravadores.” Qual foi o resultado?  “Uma fragmentação do objeto e uma crescente especialização.”1   

Sucederam-se avanços quando entramos na teoria da física quântica com o paradigma das probabilidades, da descentração e da relatividade. Passou-se a buscar o elo perdido entre os diferentes conhecimentos, formando equipes que tentam exercitar sínteses. Começamos refletir mais profundamente em princípios integrados à teoria da complexidade e da transdisciplinaridade.

Foi tentando situar esse cenário – o avanço da tecnologia de informação, a globalização econômica e uma polarização ideológica menos demarcada entre capitalismo e comunismo nas relações internacionais – e propor saídas que Edgar Morin, filósofo, apresentou a teoria da complexidade. Percebeu que a maior urgência no campo das ideias não é rever doutrinas e métodos, mas elaborar uma nova concepção do próprio conhecimento. No lugar da especialização, da simplificação e da fragmentação de saberes, propõe o conceito de complexidade. Para o pensador, os saberes tradicionais foram submetidos a um processo reducionista que acarretou a perda das noções de multiplicidade e diversidade. A simplificação, de acordo com a complexidade, está a serviço de uma falsa racionalidade, que passa por cima da desordem e das contradições existentes em todos os fenômenos e nas relações entre eles.

Um desses momentos importantes de reflexão e produção de conhecimentos sobre essa busca ocorreu no Congresso de Arrábida (1994), congresso que reuniu profissionais importantes, produzindo um documento síntese dessa nova postura.2

“A transdisciplinaridade resume uma visão de mundo que coloca o homem e a humanidade no centro da reflexão e desenvolve uma concepção integradora do conhecimento. Pretende abordar a questão humana e do conhecimento desde a perspectiva de interconexão no sentido da complexidade, o que está tecido junto”.

 Mas o que é tecido junto não é um quebra-cabeça, por isso a visão de quebra-cabeça de um trabalho de equipe não funciona, questão que também examinaremos nesse capítulo. 

É enfatizada a urgência do trabalho transdisciplinar a partir da conclusão de que o crescente número de incógnitas requer pensamentos que ajudem a compreender melhor a relação entre causa e efeito. A partir de um crescimento exponencial do saber, tornou impossível conseguir-se um olhar grupal para o ser humano, segundo documento desse congresso.

Segundo Morin, o saber acumulativo, tende a produzir um ser interior cada vez mais empobrecido,  um perigo para a ascensão de um novo obscurantismo, cujas consequências no plano individual e social são incalculáveis.3

No documento produzido no Congresso de Arrábida, os pesquisadores também convocam para a instalação de um pensamento ecológico: “o reconhecimento da terra como Pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade, direito internacional de dupla pertinência, a nação e a Terra, objetivos da investigação transdisciplinária.”

O que seria esse novo perfil? São sujeitos prontos para o trânsito interdisciplinar, transversais, capazes de transpassar fronteiras. Para falar na formação de agentes transdisciplinares é usada a metáfora “anfíbio”, visto que os anfíbios passam parte de suas vidas em um meio biológico e parte em outro, daí sua grande capacidade de adaptação. Pensa-se em etapas sucessivas de treinamento-socialização-enculturação em distintos campos científicos.

Quando falamos do perfil de um profissional transdisciplinar do ponto de vista da psicanálise, falamos de alguém que é capaz de aceitar sua limitação de saber, uma consciência capaz de levá-lo a escutar diferentes saberes e avançar, tecendo junto com sua equipe uma visão complexa de um fenômeno, antes específico.

Nós, profissionais da saúde, sentimos essa demanda cada dia mais premente na nossa clínica. Tomemos como exemplo a situação atual de um pediatra: os pais, bombardeados por crescente número de informações contraditórias sobre educação e desenvolvimento, demandam ajuda do pediatra para pensar e organizar essas questões diferentes e complexas. É impossível que o profissional mantenha apenas o olhar sobre o biológico. Ele precisará transitar por uma formação clínica mais ampla, de uma adaptação ‘anfíbia’ no seu percurso de formação e trabalho. Precisará buscar alguns espaços para conseguir tecer, junto com outros saberes, sua própria posição perante essa demanda. Falamos da necessidade de construções coletivas, ou seja, ideal do transdisciplinar.

Então, “cada vez mais o processo de produção de conhecimento científico será social, político, institucional, matricial e amplificado. Abordagens totalizantes, apesar de parciais e provisórias, sínteses transdisciplinares dos objetos da complexidade”.4

Como podemos avançar nessas conquistas?

Durante minhas vivências de formação e coordenação de equipes, cujos objetos de estudo eram da ordem da complexidade (conhecimentos de vários saberes juntos), necessitei investigar e refletir muito sobre os processos inerentes à tarefa de preparar os participantes para transitarem pelas diferentes especificidades e, ao mesmo tempo, conseguir organizar uma síntese capaz de ser entendida e trabalhada por todos, síntese sem a qual não acontecia um avanço qualitativo nas tarefas conjuntas.5  

Falo de espaços de um trabalho coletivo de síntese dos saberes, processo que será desenvolvido pela possibilidade de os membros da equipe saberem se expressar e escutar os colegas, convivendo com a incompletude e a incerteza da sua especialidade. Satisfeitas minimamente essas condições, poderemos iniciar a busca e alcançar um momento e/ou um funcionamento transdisciplinar.

Costumo pensar que quando a equipe consegue atingir o transdisciplinar, ocorre um ‘encontro’6 entre os participantes, diferente do ‘encontro’ entre a mãe e seu bebê, êxito que sustenta o desenvolvimento de um novo ser humano em todas as áreas. O bebê, com suas competências típicas, busca o rosto materno para com ele iniciar uma dança complexa de aprendizagem do mundo.7 O ser humano capaz de escutar o saber do outro busca equipes para refletir sobre suas tarefas e, juntos, também conseguem produzir uma espécie de dança, melhor definida como uma ‘ciranda’ que desemboca em novas compreensões, as quais entendemos como transdisciplinares.

Será sobre as dificuldades e o sucesso da constituição dessa ‘ciranda’8 que pretendo discorrer nesse capítulo.

O trabalho transdisciplinar não é como montar um quebra cabeça. Então, o que é?

Vamos pensar em uma reunião clínica na qual diferentes profissionais discutirão o caso clínico de uma criança hospitalizada em um hospital de referência. Teremos um pediatra que, provavelmente, estará no front do atendimento. Junto dele, diferentes profissionais: outras especialidades médicas, enfermagem, auxiliares de enfermagem (se possível), fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social e talvez outros, de acordo com a instituição.

A discussão será iniciada com a apresentação do médico clínico de referência do caso. Serão colocadas dúvidas e prováveis impasses na condução dos atendimentos. Todos ali convivem com a dinâmica do trabalho com essa criança, olhando-a a partir de sua especialidade. Partimos, então, da visão específica do médico, e essa será a visão inicial.

A discussão começa quando cada um vai colocando situações observadas e trabalhadas: reações da criança frente a determinados procedimentos, ações familiares que colaboram ou interceptam os procedimentos, emoções próprias daquela dinâmica familiar e da equipe profissional. Começa a ser tecido um quadro que modifica a visão inicial: um profissional competindo com o saber da mãe, ao invés de sustentar sua função materna, um dado novo sobre o momento da alimentação que exige entrada de um colega que não o fonoaudiólogo, um pai que se ausenta no momento da gravidade, intensificando a angústia da mãe, uma ideia sobre um novo procedimento que um dos profissionais gostaria de tentar, mas tem dificuldade de expor e se posicionar, uma reação diferente da esperada no uso de uma medicação e assim por diante.

Nesse momento já foi desorganizada a primeira visão que cada um tinha do paciente focalizado. O raciocínio de causa e efeito não é mais possível. Estamos no raciocínio da complexidade de variáveis. Nenhum profissional é o centro. Produz-se aquilo que se nomina de descentração da relatividade. Entramos no raciocínio de probabilidades.

 Insegurança e confusão de pensamento podem instalar-se, lembrando a ideia de caos. Porém, sem essa etapa, o grupo não avançará na busca de absorver a complexidade de seu objeto de estudo.

Precisaremos de uma coordenação, liderança imposta ou surgida naquele momento. Alguém que facilite a voz de um participante do grupo um pouco inseguro, estimulando verbalizar aquilo que cochichou no ouvido do colega enquanto a discussão se desenvolvia; que empondere um profissional que trouxe uma informação importante observada durante a limpeza do quarto, uma reação estranha no uso de certo procedimento, uma nova hipótese de um colega médico de outra especialidade e que mobiliza uma investigação não feita até então. Essa coordenação precisa estar imbuída de certeza que um pensamento simplista não dá conta do quadro examinado, que esteja convencida da não soberania de um único saber naquela discussão e que possa dar protagonismo para cada profissional implicado na cena clínica.

Nesse momento da reunião clínica a visão sobre essa criança hospitalizada já será outra. Foi um trabalho de montar um quebra-cabeça, de complementação? Não!

            Fez-se algo diferente que entendemos poder chamar de ‘suplemento’, conceito de um filósofo importante da psicanálise chamado Derrida.9 Isso quer dizer que alguma coisa a mais aconteceu na mente de cada uma daquelas pessoas. Ocorreu uma construção. O conhecimento deu um salto, ele não se fechou em uma harmonia de um quebra-cabeça montado, pelo contrário, abriu-se em uma porção de dúvidas em cada participante da equipe. Porém, concomitantemente à angústia da dúvida, todos sentem a satisfação de ampliar a sua visão particular. A nova visão do caso discutido teceu um entendimento transdisciplinar, trabalho feito entre angústia e prazer. O medo da incerteza e o prazer de sentir-se junto da equipe oscilam no interior de cada participante da discussão em busca de aprender a transitar pelo pensamento complexo.

Nesse sentido, falamos que o profissional, aceitando seus limites, deseja fazer esses ‘encontros’, busca essas discussões, nas quais se produz uma ‘ciranda’, busca o grupo, assim como o bebê típico busca o rosto materno. O saber da diferença desperta curiosidade e é capaz de sustentar a angústia de não saber algo que o colega diferente, da outra especialidade, sabe.

A reunião clínica transforma-se também em uma ‘ciranda’ onde há sintonia de movimentos, harmonia de contatos, mesmo quando durante a sua execução alguém fique atrapalhando ou lute para imprimir um movimento individual.  O prazer do fazer conjunto suscita angústia, mas não tanto como a angústia que ele sentiria na solidão do ter que dar conta sozinho de um trabalho que se sabe ser complexo, como a clínica de uma criança hospitalizada.

Sintetizando o pensamento de Derrida sobre sua definição de ‘suplemento’:  após a discussão na equipe multidisciplinar, os conteúdos serão ordenados por um termo novo que os reorganiza, colocando-os em um conjunto que não existia.10 O conjunto que não existia antes da discussão fará parte da construção do transdisciplinar. Uma construção que nos faz oscilar entre o prazer de nos sentirmos completos e a angústia de sentir que sempre irá nos faltar algo.

E quando estamos sozinhos?

Infelizmente, muitas vezes estamos na solidão das nossas clínicas e precisamos intensificar nossas defesas de completude para poder trabalhar.

Atualmente dispomos de recursos tecnológicos que suprem algumas lacunas mas que também exigem nossa humildade e disponibilidade de desconstruir nosso saber e construir outro, que é grupal. Os grupos profissionais de WhatsApp se proliferaram na busca de integrar atendimentos, mesmo com muitas dificuldades. Novamente, precisamos de uma liderança, necessitamos de disponibilidade para buscar e sustentar essa comunicação.

Também se proliferam cursos formativos que se dizem interdisciplinares, reunindo diferentes profissionais. Porém, é importante lembrarmos que juntar profissionais de diferentes saberes não significa obter um trabalho transdisciplinar. A síntese de informação é um outro processo a ser mobilizado via discussões interdisciplinares conjuntas. Não acontece quando temos apenas exposição de saberes separados em um programa acadêmico. Mas essa forma de funcionar faz parte da construção dessa busca de ‘tecer’ junto a uma visão mais integrada do fenômeno clínico que nos é confiado para diagnóstico e/ou tratamento. É importante lembrarmos que quem nos busca acredita que acharemos a melhor solução, sem se importar se temos dúvidas, e sim, se somos capazes de buscar respostas com eles para ajudar a resolver o seu sofrimento.

Um percurso de formação de equipe para atendimento de Bebês de Risco em Saúde Mental

A ideia de constituir uma equipe para essa população surgiu da observação e vivência em uma instituição que recebia crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista), já com idade de cinco ou seis anos, quadro quase sempre fechado no seu diagnóstico. A dura realidade familiar com um sofrimento e despreparo para trabalhar com a equipe os sintomas consolidados e prognóstico reservado despertaram o desejo de investigar outras possibilidades no campo da intervenção precoce. O caminho foi voltar para o início da vida e tudo nela implicado, com a dialética complexa de como um corpo biológico se transforma em um ser humano capaz de interagir.

Havia uma certeza da necessidade de vários olhares profissionais, conquistada pelas informações atualizadas sobre desenvolvimento humano, e uma certeza de que o trabalho em equipe tem mais força e êxito.

Minha crença interna em trabalho grupal foi estabelecida na infância em uma zona rural. Por necessidade, moradores de um vilarejo no qual ainda não havia eletricidade juntavam-se, regularmente, no pátio da minha casa, sob coordenação de meu pai. Abatiam um animal e o trabalho era distribuído de acordo com o perfil de cada participante: os homens abatiam o animal e as mulheres providenciavam o aproveitamento de derivados, tais como linguiça e outros.  Enquanto isso, as crianças brincavam com a bexiga do animal, usando-a como balão; elas também tinham a tarefa de fazer transitar a cuia de chimarrão e espantar outros animais (galinhas, cachorros e gatos) que ameaçavam surrupiar partes desses alimentos que estavam sendo preparados pelos adultos. No final do dia tudo era dividido e, assim, todos podiam usufruir desses alimentos, que eram conservados em latas de banha (gordura animal).

            Meu pai participava de tudo, mas sem parecer que essa organização grupal dependesse dele. Amorosamente, ele me fazia observar sinais da dinâmica do grupo que demandavam intervenção: uma cuia de chimarrão parada, um gato ou um cachorro que se aproximava da carne, uma galinha que ameaçava pular na mesa, um participante dizendo-se com sede ou suando muito.  Tratava-se de me ajudar a perceber a dinâmica de ‘tecer junto’ a sobrevivência do nosso grupo social. O aspecto transdisciplinar não era a carne obtida pelo abate do animal, mas uma forma de solução para os problemas de sobrevivência dessa comunidade, solução grupal, que era estendida para construção de igreja, escola e salão de baile.

Enfim, tudo isso para dizer que um dos critérios fundamentais para organização de uma equipe transdisciplinar também baseia-se na confiança que a liderança tem na capacidade e força do grupo. As dificuldades vão sendo trabalhadas aos poucos. Consequentemente, os participantes também precisarão demandar esse ‘encontro’, acreditar e querer o ‘encontro’ com os outros diferentes dele.

Voltando ao trabalho dessa equipe de Bebês de Risco em Saúde Mental,11 após serem reunidos alguns profissionais com esse mesmo desejo, partiu-se para investigar o objeto de estudo: como um corpo biológico se transforma em um ser humano,12 quais os sinais de risco nessa caminhada de desenvolvimento e subjetivação, como intervir nesses sinais de risco para evitar patologias ou minimizá-las?

  • Falamos da construção de um modelo, com pressupostos teóricos e clínicos, análise de vários outros modelos já existentes, limites e adequação à nossa população, bem como uma constituição possível de trabalho com nossa equipe, ou seja, dentro da realidade. A adequação à realidade exige muita resiliência pois o ideal sempre estará muito distante e talvez não seja possível. A própria realidade da população ‘bebês de risco’ circunscreve inúmeras limitações, quer nos encaminhamentos, nos acolhimentos e nos atendimentos.
  • No caminho de encontrar fundamentos teórico clínicos da tarefa, delineamos que a função da equipe seria facilitar o encontro entre mãe-bebê sem perder a especificidade das especialidades, mas mantendo essa tarefa comum.

O período da busca do transdisciplinar exige que predominem discussões, análises de fracassos e sucessos, desacordos e acordos. A função do coordenador assemelha-se à função materna junto a um bebê: sustentar fragilidades individuais, decifrar sinais nos diferentes participantes, recortar feitos construtivos e minimizar efeitos de participações invasivas, e tentativas de supremacia de algum saber. A formação de um ‘eu’ dessa equipe transcorrerá via esses momentos delicados, uma luta do coordenador para ficar dentro/fora, dirigir e soltar, calar e falar. Trata-se de um caminho delicado, mas com uma firmeza própria da função materna que acolhe, ajuda a decifrar e vai encaminhando o trabalho também para a função paterna, com um enquadre de limites e definições.13

Uma equipe que trabalha com bebês necessariamente deve ser mais emotiva, sensível,14 para poder sintonizar melhor com essa população, característica importante, mas também estimuladora de maiores atritos na intracomunicação grupal. Essa mesma sensibilidade pode ser de muita ajuda não só nas discussões clínicas, mas também na capacidade de escuta e colaboração entre os participantes da equipe quando um colega precisa de maior cuidado.

Nesse processo inicial de construção de um caminho para sintetizar a complexidade do objeto de conhecimento faz-se necessário ser criada a linguagem comum, exercício difícil, mas possível. Estimular os membros a comunicarem sua opinião com palavras simples, sem significar que os conceitos a serem transmitidos não têm a mesma importância quando são falados em um palavreado comum. Ressalto que essa simplicidade necessária na comunicação encontra muita resistência pelo temor de se encontrar uma interpretação negativa, ou seja, o grupo interpretar o colega como não sendo capaz na sua especialidade. Sabemos do impacto, da admiração que palavras difíceis podem causar em um grupo. Traduzir conceitos em palavras possíveis de serem compartilhadas na comunicação grupal nem sempre causa admiração, questão fundamental e difícil a ser trabalhada na equipe.

            Investigações e estudos teórico-clínicos nos levaram a encontrar colegas estudiosos do mesmo fenômeno que já haviam andado na direção de traduzir conceitos de forma transdisciplinar.  Bebemos nessas fontes e fomos criando nosso caminho.

Falo da síntese que passamos a usar, tanto para sintetizar o caminho de como o corpo biológico se transforma em sujeito, como servir de representação para elegermos formas transdisciplinares de intervenções.

A síntese abarcou conhecimentos de todas as disciplinas, organizando-se de forma a possibilitar uma comunicação compartilhada, processo simbólico possível quando se acessa ao modo de representação secundária. O corpo biológico se transforma em ser humano a partir de ‘Ser olhado, retornar o olhar e buscar ser olhado’.15

Na psicanálise significa a síntese do que se entende por circuito pulsional, movimentos dos primórdios da constituição psíquica. Pressupõe um encontro entre esse corpo e um outro semelhante, em uma relação que promoverá o surgimento de outro ser humano ao mesmo tempo que aciona todos os mecanismos do desenvolvimento com todas as suas funções instrumentais. Um bebê que é convocado pelo olhar e voz materna, responde com o tônus de seu corpo e esse exercício integra corpo e psiquismo.

A partir dessa síntese transdisciplinar, uma sintonia entre diferentes abordagens teórico-clínicas, uma dança também entre corpo e psiquismo, forma-se um caminho para as intervenções interdisciplinares serem organizadas de forma harmônica, em uma linguagem comum, mas sem se abandonar as diferentes formas de intervenção.

Psiquiatras, psicólogos, musicoterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, assistente sociais farão tarefas específicas de acordo com sua formação, mas na elaboração da síntese diagnóstica e de intervenção, falarão a língua comum, terão suas condutas balizadas na busca de fazer andar esse circuito nos sinais de risco do bebê e suas famílias. Não importa se o circuito está com falhas de origem genética, física ou nas relações parentais, as intervenções serão desenvolvidas a partir do entendimento de cada quadro clínico, com a transdisciplinaridade constituída nessa síntese. Poderão estar juntos na mesma cena clínica e cada um usar suas ferramentas específicas.

Conflitos e incertezas no exercício de coordenação de um processo de construção transdisciplinar

Durante esse trabalho, enquanto coordenadora, sempre me questionei sobre as formas de organizar esses saberes de tal forma que possam, juntos, serem produtivos. As posições pessoais exacerbadas, narcisismos excessivos, conflitos de demandas, crises pessoais, são exemplos de barreiras no processo, oscilações na construção conjunta.

Enquanto coordenação, é preciso deixar fluir, sem desorganizar, tal como costumo entender o procedimento necessário para uma instituição conseguir ser um modelo para trabalhar com as diferenças em situações inclusivas: abrir-se, sem despedaçar-se, emprestar-se, sem perder-se. Um exercício de liderança que precisa estar em sintonia com o abandono de certezas, fundamento do transdisciplinar. Quando devemos intervir, quando devemos deixar fluir, quando devemos exercer autoridade? Podemos estar impedindo a criatividade se intervimos inadequadamente. Qual é o limite produtivo de duração de um momento de caos?

Frente a esses impasses, recorri a Morin (2005), que nos fala da existência de uma forte relação entre ordem e desordem, ambas se influenciam mutuamente. Em certos casos, fenômenos desordenados são necessários para se atingir uma organização. Em outras palavras, a desordem também pode contribuir para o avanço de uma equipe.

Uma equipe também pode ser pensada como similar à constituição de um novo ser humano. Não precisa apenas da função materna que decifra sinais e antecipa necessidades, mas também da função paterna que interdita quando necessário.

Na sustentação dessa tarefa, recorri à metáfora da poda de plantas, vivenciada na minha infância. Ouvia meus pais falarem: “Wir machen ein trieb” (nós vamos podar as plantas, no caso). Enquanto criança, eu ficava apavorada observando essa poda que parecia ser o assassinato das plantas. Não entendia como eles faziam isso com as plantas e nunca imaginaria que logo depois surgiriam brotos maravilhosos e a planta mostraria um vigor esplêndido, com seus brotos, flores e frutos. Só mais tarde, com os conhecimentos da psicologia e da psicanálise, esse conceito fez sentido, não só para a natureza vegetal, mas também para a humana. Também me dei conta de que Freud conceituou pulsão usando o vocábulo alemão trieb, um dos principais conceitos da teoria psicanalítica.  Uma força dentro/fora que constitui o motor para a vida psíquica. Um motor que necessita do encontro com um outro semelhante para conseguir funcionar, um outro que se denominará função materna e função paterna.16

            A função paterna, organizadora do ser humano capaz de simbolizar e fazer parte da cultura, surge a partir dessa poda, ao que se denomina em psicanálise, “castração”.  Se deixarmos a pulsão à sua revelia, teremos na planta uma confusão de galhos sem direção produtiva, incapazes de extrair a capacidade daquele vegetal; no ser humano, teremos alguém sem organização psíquica-simbólica, incapaz de compartilhar comunicação nas relações com seus semelhantes.

Mas eis o conflito, tanto de quem faz a poda de uma planta, como de quem exerce a parentalidade ou coordena uma equipe para constituir uma síntese conjunta: como podar? Até onde? Quando?

Os agricultores precisam conhecer muito as plantas que irão podar, os pais precisam ter noção de quais valores gostariam de transmitir para os filhos e os coordenadores de equipe precisam ter noção razoável dos saberes envolvidos na tarefa da mesma, bem como, transitar pelas singularidades de seus membros, administrando os diferentes sons para que a orquestra produza uma música, ou que a música produzida permita que os participantes da ‘ciranda’ se encontrem harmonicamente no ritmo da tarefa. Quem precisa realizar poda e tem consciência da complexidade dessa função se angustia, se questiona permanentemente sobre suas certezas: será que interfiro nisso ou naquilo, agora ou depois?

Não se tem a verdade e, por isso, graças a esse fundamento da dúvida, cerne da postura transdisciplinar, que a equipe vai se constituindo entre um direcionamento e um momento de caos, mas ambos os movimentos podem ser criativos.

A partir de minhas experiências nessa tarefa, entendo que a eficácia da coordenação estará na consciência da complexidade, do olhar confiante para as singularidades, acreditando que a força grupal fará surgir algo organizador, algo simbolizante. Porém, já transitei por momentos nos quais me senti fragilizada para podar, atrapalhada por vínculos pessoais com algum membro, e isso acabou gerando fraturas na equipe que prejudicaram muito o trabalho. Também sofri por fazer algumas ‘podas’ e receber incompreensões momentâneas, difíceis de suportar; precisei tolerar a espera do tempo para que a atitude pudesse vir a ser compreendida, tal qual os pais aguardam os filhos crescerem para ouvir: agora eu entendo por que eles faziam isso! A ideia de podar não é matar, podar é ajudar a organizar o crescimento.

Acredito também que o ser humano que busca o grupo vai para seus iguais com esse desejo identificatório, de pertencimento, já com a falta, ou seja, sabendo que ele precisa da riqueza das diferenças. Mas, se ele estiver fixado em um narcisismo doentio, não terá consciência de seu limite. Irá para o grupo para dominar e sobrepor seu saber e não para escutar.

Enfim, ajudar a constituir profissionais ‘anfíbios’ é urgente e acredito que a grande maioria deseja isso, tem essa demanda. Porém, as barreiras emocionais podem ser a nossa maior dificuldade, mantendo e cronificando isolamentos dos saberes, atitudes catastróficas para o avanço do conhecimento e das soluções para o ser humano.

Porém, apesar de dificuldades, continuamos lutando para que os bebês tenham uma escuta capaz de atender a complexidade de saberes que eles demandam.17

Bibliografia:

  1. Morin E. (2005) Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina; 2015.
  2. CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE – comitê de redação: Freitas L, Morim E, Nicolescu B. [publicação na web]; Convento de Arrábida, 6 de novembro de 1994. Acesso em 21 de abril de 2023. Disponível em: http://www.cetrans.futuro.usp.br
  3. Morin E. (2005) Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina; 2015.
  4. CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE – comitê de redação: Freitas L, Morim E, Nicolescu B. [publicação na web]; Convento de Arrábida, 6 de novembro de 1994. Acesso em 21 de abril de 2023. Disponível em: http://www.cetrans.futuro.usp.br
  5. Zimmermann VB. Adolescentes estados-limites. A instituição como aprendiz de historiador. São Paulo: Escuta; 2007.
  6. Aulagnier P (1975) A violência da interpretação- do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago; 1979.
  7. Trevarthen C, Gratier M. O bebê nosso professor. São Paulo: Instituto Langage; 2019.
  8. ‘Ciranda’- metáfora que pensei para esse momento onde ocorre o transdisciplinar. Gestada em discussões com minha colega e amiga Cristiane Abud.
  9. Derrida J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva; 1973.
  10. Derrida J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva; 2009.
  11. Zimmerman VB. Trabalhos psíquicos de uma equipe, na direção de uma intervenção transdisciplinar com bebês. In: Kupfer MC, Szejer M. (org.) Luzes sobre a clínica. São Paulo: Instituto Langage; 2015, p. 233-246.
  12. Torres MV. Intervenciones Tempranas. Buenos Aires: Lumen; 2008.
  13. Zimmermann VB,  Mori, J. Programa Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental: uma intervenção oportuna e uma formação oportuna de profissionais. In Souza AP,  Zimmermann VB. Inserção de crianças e adolescentes na cultura. São Paulo: Instituto Langage; 2016, p. 89-107.
  14. Laznik, MC. Psicanalistas que trabalham em Saúde Pública. São Paulo: Pulsional, Revista de Psicanálise, ano XIII, número 132, p. 62-78, 2001.
  15. Laznik, MC. A hora e a vez do bebê. São Paulo: Instituto Langage; 2013.
  16. Freud S. (1915) Os instintos e suas vicissitudes. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago. v. XIV, p. 127.
  17. Zimmermann VB. Desenvolvimento na Primeira Infância: indicadores precocíssimos de risco. In: Silva MC. (org) Fronteiras da Parentalidade e recursos auxiliares. São Paulo: Blucher; 2022, v. 2, p. 243-256.
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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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