Colocar-se no lugar do ‘outro’? Como se desenvolve esta capacidade no ser humano?

Desde o nascimento ocorre um “diálogo” entre pais e bebê que sintetizam e metaforizam mensagens, inicialmente, pré-verbais, tais como gestos e expressões de sentimentos, mensagens estas que vão constituir as bases de identificações da criança, ou seja, sua personalidade.

Desejar ter um filho implica muito mais do que satisfazer nosso narcisismo, ou seja, prolongar nossa existência por meio deles; é preciso que o investimento amoroso seja intermediado com atitudes que nem sempre são prazerosas aos pais, ao contrário, implicam em deixar o seu próprio prazer e pensar naquilo que é necessário ser feito por eles para que seja desenvolvido um outro ser humano. Um ser humano que certamente terá suas diferenças e um dia viverá separado deles, tendo que enfrentar o mundo com “ferramentas” muitas delas desenvolvidas na família.

Tentarei focalizar alguns aspectos temáticos e seu processo durante as faixas etárias, mostrando como podem ser trabalhados pelos pais os diferentes aspectos implicados na tarefa de “fazer um outro ser humano,” mobilizado para o social, com o desenvolvimento de uma dose adequada de sentimento de confiança em relação ao seu semelhante, de tal forma a lhe possibilitar viver no seu grupo sentindo-se seguro.

Como os pais começam a formar um ser humano capaz de perceber as necessidades e direitos do outro que o cerca?

Inicialmente, bebê e mãe, ou quem exerce a função materna, apresentam-se indiferenciados, um como extensão do outro. O bebê precisa viver privilégios de “rei” para que se forme uma base sólida de autoestima na sua personalidade.

Mas este ‘reinado” precisa ir, aos poucos, sendo diminuído, sem que a criança perca a “majestade”. Já durante o primeiro ano, nos seus acessos de raiva, o bebê tende a “atacar” a figura materna quando frustrado. Isto pode ser traduzido por tentar bater no rosto da mãe, por exemplo. Neste momento já é hora de se pontuar a separação entre um e o outro, ou seja, ele não tem direito de machucar a mãe, apesar de estar triste ou raivoso. O diálogo que se estabelece, predominantemente pré-verbal, não permitindo que isto se repita, ou seja, segura-se a mão da criança e explica-se que “não pode fazer isto”. Ao mesmo tempo, tenta-se entender a sua frustração e, na medida do possível, conciliá-lo com a realidade. Pontuar esta realidade não significa não consolar a criança frente a frustração, mas significa mostrar-lhe que existem limites na expressão da mesma.

Assim, o bebê já começa a ser convidado a perceber o “outro”como separado de si e, principalmente, perceber que as outras pessoas não são sua propriedade, embora queira perpetuar esta condição que no início lhe era vital e necessária para sua sobrevivência física e psíquica.

O diálogo que se estabelece é no ato, portanto, não adianta só falar, tem que agir, ou seja, segurar a reação motora da criança. Ela pode chorar, gritar, mas não bater na mãe. A resistência que a criança revela em desistir da possessividade em relação ao adulto é normal, mas deve-se ir colocando limites, caso não se queira desenvolver um ser humano autoritário e muito narcisista.

Aos poucos os pais vão apresentando o mundo para o filho (a), quer mostrando objetos, quer mostrando seres vivos.

Ele pode manusear coisas, explorar objetos, tocar os seres vivos. Neste momento temos outro nível de interdição, cujo exemplo pode se dado no contato feito com plantas: mostram-se plantas, explicam-se suas características: “Olha a plantinha! (possibilite a criança sentir a textura, o perfume, brinca-se com o contato da planta no corpo da criança quando possível) A tendência da criança é tentar fechar a mão quando toca na planta e tentar puxa-la, rasgando-a. Neste momento cabe aos pais impedi-la, dizendo que a plantinha vai ficar estragada, portanto, novamente o verbal deve ser acompanhado da ação de impedi-la de fazer isto uma segunda vez. Muitas vezes, cabe dizer: “A plantinha vai chorar”, pois esta linguagem já pode ser entendida a partir do primeiro ano.

Nestes contatos incrementa-se a noção de que existe uma realidade fora dela que precisa ser cuidada, tanto como ela é cuidada pelos seus pais. A noção de “ser vivo” também começa a ser descriminada com este tipo de ajuda.

Também, a colocação de limites deve ser acompanhada de possibilidade da criança fazer o que chamamos de “reparações”, ou seja, mostrar-se arrependido quando comete uma agressão desnecessária e tentar “consertar” o que estragou. Por exemplo, se rasgou folhas de uma planta, pode ser convidada a regá-la, revolver a terra, etc…

Outro diálogo importante pode ser mobilizado com o contato da criança com os animais. Cada vez mais, a partir do segundo ano, ela se interessará por movimentos. Mas precisa entender aos poucos o que é movimento de objeto e movimento de ser vivo. Haverá medo e paixão pelos animais e a aproximação servirá para muitas experiências de base do que chamaremos mais tarde de “cidadania”. Ao tentar explorar as características de um animal, ela tenderá a manuseá-lo também como um objeto que lhe pertence. Cabe aos pais colocar os limites, isto quando o animal não coloca ele mesmo. É uma boa oportunidade, já mais explícita do que com plantas, de mostrar o que ele pode causar num outro ser vivo, ou seja, sua ação provoca uma reação e nem sempre ela é simétrica. Um animal pode reagir mal, até quando acariciado. Eis as primeiras vivências de perplexidade frente aos outros seres vivos: cada um tem suas características e reações específicas e para podermos conviver bem, precisamos buscar entender estas diferenças e lidar com elas. Por exemplo, um determinado animal permite que lhe puxe o rabo sem reagir com raiva; outro pode reagir com uma mordida.

Assim o mundo vai sendo-lhe apresentado nos seus mistérios que ele terá que aprender a observar e decifrar, pois não poderá agir apenas pelo seu próprio prazer. Ao mesmo tempo, o mundo social vai sendo ampliado, quer na família, quer por meio de ingresso em creche e pré-escola. Já não será o centro de tudo em todos os lugares. Pode sentir-se muito especial e amado, mas começará a perceber que os outros também tem privilégios iguais aos seus.

Os primeiros contatos com seus iguais, ou seja, crianças de sua faixa etária, também serão motivo de grande aprendizagem. Aprenderão que existem reações diferentes, em continuidade com o que já vinham desenvolvendo. O brinquedo será motivo de conscientização e muitas vezes, de “tragédias” ambientais: dividir algo com o outro será o próximo desafio do futuro cidadão. Aos três anos ele pode saber que existem outras pessoas, que deve usar a linguagem verbal se quiser ser entendido, que necessita começar a explicar-se para defender seus desejos.

Começam as atitudes de ataque e defesa, muitas vezes ainda usando o recurso da “mordida” quando falha a linguagem verbal. As reações podem ser de fúria, choro, agressão gestual, enfim, inicia-se a realidade da convivência, ainda sem compreensão das regras que futuramente poderão discipliná-la.

Nesta faixa etária ainda se faz necessário que o diálogo criança-adulto seja acompanhado da ação motora, mesmo que o verbal esteja presente. Isto quer dizer que um ‘não “ainda deve ser acompanhado da ação de contenção. É fundamental que os pais apresentem o social mostrando os limites, ou seja, que apesar da criança ser o filho (a) mais lindo do mundo para eles, a outra criança também é assim sentida pelos pais dela. Trata-se de um processo lento de entrada na realidade, mas fundamental para que seja desenvolvido a capacidade daquele novo ser humano sair do egocentrismo inicial e poder, aos poucos, desenvolver a capacidade de colocar-se no lugar do seu semelhante. Cabe lembrar que esta compreensão deve ser gradativa: excessos de frustração ou de prazer são igualmente prejudiciais. É preciso dar a oportunidade para a criança defender-se quando agredida, mas também de reconhecer sua culpa quando foi a causadora de agressão.

No período que se sucede o terceiro ano, tudo isto pode ser enriquecido com diferentes vivências. Aos poucos a criança irá entrando em contato com a noção de morte, ou seja, entenderá que o ser vivo pode acabar um dia e que isto também depende de nossos cuidados. As angústias de separação ainda persistem e podem aparecer fobias transitórias, como os medos de certas situações ou animais. Trata-se de um amadurecimento necessário para que ele vá compreendendo a complexidade do mundo e dos seres humanos, enfim, de si próprio.

Neste período, além do que já falamos sobre o convívio social, ainda pode-se explorar outras noções que são base de cidadania futura, como por exemplo, a noção de “desperdício”. Sabemos que o “desperdício” é uma metáfora do individualismo, representando a posição de quem não está preocupado com o restante do mundo. Desenvolver o hábito de “economia” não é uma atitude “financeira”, mas também, uma atitude de cidadania: usar somente o que necessito, sem desperdiçar, como por exemplo, a água, é uma atitude de quem reconhece a existência de outros e de seus respectivos limites. O mesmo acontece em relação aos alimentos, aos objetos, as roupas.

É um momento privilegiado para que os pais introduzam o hábito de dividir ou dar o que sobra, ou aquilo que não está mais sendo usado, como roupas e brinquedos, por exemplo. Inicialmente, a noção de colaboração pode ser trabalhado no contexto familiar, depois ser estendido para o social.

Mostrar que guardar coisas que outros precisam é uma atitude egoísta, também pode desenvolver um ser humano mais solidário. Outro aspecto que se depreende dessa atitude é poder ajudar a criança a sentir-se importante em colaborar com os outros, sentir a alegria de preencher faltas no seu semelhante, aspecto que lhe possibilitará continuar sendo importante e amado na sociedade, assim como foi na família. Vai poder sentir o prazer de fazer parte do social enquanto um ser participante, produtivo.

A criança irá vivenciar a capacidade de fazer trocas, suprir e ser suprida, olhar para fora de seu “umbigo”. Além de desenvolver a noção de cidadania, a capacidade de separar-se de objetos que não mais usa, apesar deles terem sido importantes num determinado momento, também se constituirá na elaboração eficaz de sua capacidade de fazer mudanças na sua vida quando assim for necessário. Uma pessoa muito retentiva em relação aos seus pertences materiais também tem dificuldades para trocar afetos, tendendo a ficar numa posição imatura de só querer que o mundo lhe satisfaça nas necessidades, levando-a a interpretar dificuldades a partir de causas externas a sua ação. Dessa forma, pode-se criar um ser humano passivo, indiferente a causas sociais necessárias de serem abraçadas para melhorar a realidade.

Também, no próprio contexto familiar, os pais podem possibilitar situações nas quais a criança sente-se “pertencendo” e sendo útil ao grupo, mesmo com tarefas insignificantes aos olhos dos adultos: arrumar os brinquedos, da forma como pode estender a colcha na cama, guardar uma roupa no cesto ou armário, levar o prato para a pia, acompanhar simbolicamente os pais na realização de tarefas caseiras. Tudo isto cria as bases para que ele possa sentir-se um ser produtivo, elevando a auto-estima e possibilitando que ele seja introduzido na cadeia produtiva de uma forma prazeirosa. Auxiliar a família nas tarefas comuns pode ser motivo de recusas e brigas, mas certamente deve ser enfrentado pelos pais porque isto surtirá efeitos benéficos na personalidade futura.

A criança que foi valorizada numa simples tarefa familiar tenderá a estender esta satisfação para qualquer tarefa que venha a exercer no futuro, pois terá a certeza de que é capaz de produzir algo e isto é a base para a busca da inserção social no trabalho. Tendo o sentimento de ser capaz de “produzir”, será mais fácil na adolescência fazer suas escolhas profissionais e alcançar êxito na sua busca de realização.

Chegando a faixa etária dos 7-12 anos teremos outros diálogos a serem feitos com a criança, que de certa forma, são prolongamentos das noções que se iniciaram quando bebês.

Até esta faixa etária, posição ainda um tanto egocêntrica em relação ao mundo, a criança começa a perceber a complexidade das regras. Até então já percebia que haviam regras, mas ainda pensava que tinham uma realidade apenas voltada para o prazer individual, ou seja, a regra que me convém. Quando muito, aceitavam regras, mas aquelas que seus pais lhe ensinaram, sem poder entender que elas podem ser organizadas a partir dos grupos e que o importante é que uma vez combinadas, devem ser seguidas igualmente por todos.

Inicia-se com mais força o período competitivo, onde a necessidade das regras impera, mas também, inicia-se a luta por fazê-las predominar segundo os interesses individuais ou de uma maioria. É freqüente ocorrerem brigas, o abandono dos jogos, as discussões demoradas e, como não poderia deixar de ser, o início da elaboração de estratégias de enganar os semelhantes, aquilo que as crianças sintetizam gritando indignadas: “ele está roubando! “.

Nesta etapa, o que se denomina “roubo”, ou seja, burlar as regras, nada mais é do que atitudes de crianças que não toleram frustrações, ou seja, tiveram excesso de “reinado”. Geralmente, foram pouco introduzidas nas vivências de perceber seus limites e ao mesmo tempo, não foram estimuladas adequadamente a ver suas capacidades e acreditar nelas. Assim, frente aos limites de um desempenho, não conseguem ter esperança de vir a conseguir melhorar a performance, não sabem perder, pois perder significa ficar aniquilado para sempre.

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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