Artigo publicado na Revista Mente e Cérebro, edição 244 – Maio de 2013
No campo de saúde mental um sintoma na infância pode ser entendido de formas diferentes, de acordo com a área de conhecimento de quem o observa.
Na psiquiatria, a existência de alguns sintomas observáveis fenomenologicamente serve de orientação para o diagnóstico. Este tipo de abordagem é importante e necessária para que seja circunscrito quadros e síndromes e para que sejam realizados determinados tratamentos medicamentosos. Já, as disciplinas que se ocupam com uma abordagem psicodinâmica, entre elas a psicanálise, complementam (sem contraporem-se a abordagem psiquiátrica), observando o sintoma, primeiramente, como algo que a criança está querendo comunicar a respeito daquilo que pode estar lhe fazendo sofrer e, por isso, entendemos necessário decifrá-lo. O CRIA (Centro de Referência da Infância e da Adolescência da UNIFESP), nas suas bases conceituais de trabalho, fundamenta sua clínica numa concepção de sujeito que se constitui a partir da interação complexa entre o corpo e psiquismo.
‘Olhamos’ a criança sob vários aspectos, sempre considerando, além dos fatores psíquicos, as questões orgânicas e socioculturais. Com base nessa experiência, neste artigo buscarei explicitar o sintoma segundo a psicodinâmica, incluindo as variáveis próprias de um serviço de saúde pública.
A abordagem psicanalítica, a partir de resultados clínicos constata que a constituição de um psiquismo funciona como um sistema aberto a significações e resignificações, principalmente até a adolescência.
Pensando assim, defende que diagnósticos em saúde mental na infância devem ser cuidadosos no que concerne ao fechamento das hipóteses, evitando assim encerramentos que venham limitar possibilidades de mudanças, e que tendem a levar a criança a ser percebida através de um destino traçado em função daquele quadro psicopatológico. Exceto em patologias graves, precoces, comprovamos clinicamente que intervenções imediatas, já na primeira infância, minimizam importantes efeitos herdados ou adquiridos no início da vida.
No caminho da busca de sentido do sintoma, às vezes, uma simples pergunta do profissional endereçada aos pais que trazem uma queixa, fazendo-os refletir sobre algo da vida da criança, tende já a produzir modificações na forma deles olharem para a situação, consequentemente, redimensionar o fenômeno e o sintoma que foi motivo da consulta. Por exemplo, ‘em que situações você observa que seu filho(a) age desta forma?’; ‘Aconteceu alguma mudança no ambiente nos últimos tempos?
O sintoma nas diferentes idades:
Na primeira infância a criança comunica-se via manifestações somáticas porque ainda não consegue expressar-se numa linguagem simbólica, o que dificulta o seu deciframento pelo adulto cuidador.
Observam-se várias manifestações psicosomáticas do bebê relacionadas ao afastamento ou emoções da figura materna, mesmo que temporário: dores de barriga do bebê associadas a angústia excessiva dela; febres repentinas frente a sua ausência; diarreias e constipações frente a situações que exigem maior elaboração da presença ou ausência dos seus cuidadores.
Os bebês também expressam seus sintomas recusando o seio; tendo dificuldades com a alimentação; com o sono e ainda, manifestando choro ou apatia em excesso. Choro esse que pode ser diagnosticado como um excesso de angústia de quem dele se ocupa; distúrbio de sono que pode ser causado por um ambiente com excesso de estímulos sonoros e visuais, impedindo que o bebê possa ir desfrutando de uma rotina apaziguadora antes de dormir, ou de pais ansiosos que ao menor ruído da criança se aproximam e a despertam. Vários desses e de outros sintomas podem ser a forma do bebê manifestar o seu mal estar psíquico em relação ao seu ambiente. Neste período, estabelecer uma riqueza na escuta das diferentes manifestações somáticas e possibilitar uma nominação favorece a constituição do psiquismo.
Após o terceiro e quarto ano a criança pode apresentar outros sintomas, que não apenas no corpo. Nesta faixa etária são comuns acessos de raiva e de comportamento desafiante, argumentativo, hostil e deliberadamente irritante. São condutas normais que também possibilitam que a criança vá se independizando psiquicamente dos adultos, começando a definir o que quer e é. Quando esse padrão de comportamento persiste na idade escolar podemos pensar que está ocorrendo alguma falha na organização dos padrões de autoridade, ou seja, as figuras parentais não estão lhe colocando limites necessários a organização de seu psiquismo frente a frustrações da vida. E se a onipotência pertinente aos primeiros anos não for modificada teremos certamente vários tipos de patologias, principalmente as relacionadas ao convívio social perturbado, com consequências diretas no aprendizado escolar.
Ainda, sob o ponto de vista da psicanálise, podemos dizer que um sintoma na infância apresenta labilidade, ou seja, um mesmo sintoma pode significar várias coisas diferentes e estar em inúmeros quadros patológicos, por isto é necessário um método capaz de tornar útil sua classificação. Ele pode nos comunicar: alguma patologia da clínica infantil; características evolutivas do desenvolvimento; resultado do processo de estruturação psíquica específica daquela criança; reação a uma situação ambiental e/ou familiar. Explicito:
1. Quando uma criança não responde a estímulos do seu interlocutor podemos estar frente, por exemplo, a: um quadro do espectro autista; de depressão no qual a apatia pelo mundo a faz desistir de comunicar-se naquele momento; déficits sensoriais como cegueira ou surdez ou uma atitude de recusa específica de relação com os adultos que fazem parte daquela cena, significando uma resposta de negativismo passageiro ou próprio de um momento do desenvolvimento.
2. Quando uma criança é agitada, desatenta, com dificuldades de conduta e aprendizagem na escola podemos pensar: numa desorganização psíquica grave no qual o excesso de angústia dificulta o estabelecimento da diferença entre interno e externo, causando agitação desordenada; um quadro de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDHA) no qual a criança não desenvolve a necessária maturação neurológica, dificultando a aquisição de um bom controle do tempo e do espaço, bem como das frustrações; uma reação de ansiedade transitória frente a alguma mudança ambiental , familiar ou mesmo, intrapsíquica; um quadro depressivo que se revela pela agitação como maneira de driblar a tristeza; ainda, um ambiente familiar e/ou escolar que não privilegia seu potencial cognitivo, oferecendo poucos estímulos que a motivem e a satisfaçam.
3. Os sintomas fóbicos também podem ser exemplos importantes de labilidade: no primeiro ano de vida a angústia frente aos estranhos é sinal de saúde mental e cognitiva, pois a criança está nos dizendo que conseguiu romper a indiferenciação entre o ‘eu’ e o ‘não eu’; os medos do escuro, de bichos ou outros medos comuns nos primeiros anos de vida nos falam também do movimento de estruturação psíquica saudável, no qual existe o desenvolvimento da capacidade de perceber as diferenças existentes no mundo externo e interno, a tomada de consciência gradativa de seus limites e de sua dependência dos adultos. Nestes momentos os sintomas surgem como forma de elaboração destes sentimentos e ajudar a criança a lidar com eles e enfrentá-los é a forma de ir decifrando com ela as questões com as quais está se confrontando naquela faixa etária. Já outras fobias, principalmente após o sexto e sétimo ano, podem nos indicar o deslocamento de algum sentimento indesejável para um outro objeto ou situação que não aquela que a originou, exigindo já um trabalho psicoterápico para que a criança possa descobrir e decifrar a origem de seus medos.
4. Uma determinada conduta apontada como sintoma ainda pode ser parte do processo de identificação de uma criança, como, por exemplo, um menino que se apresenta afrontando autoridade na escola e se recusando a cumprir tarefas, pode estar identificado com a história do seu pai na infância, mesmo que isto não seja algo explicitado. Muitas vezes, basta perguntarmos para o pai como ele foi naquela faixa etária e poderemos observar seu sorriso de consentimento, parecendo que ele está dizendo: “Este é meu filho!” Ao mesmo tempo, repreende-o e o traz para consulta, parecendo querer eliminar o sintoma.
Além da labilidade do sintoma, em se tratando de uma população atendida nos serviços públicos, a complexidade das variáveis socioculturais exige dos profissionais uma investigação mais apurada de variáveis subjetivas, antes de se formularem diagnósticos via instrumentos padronizados. Examinemos alguns exemplos:
João, um ano e três meses, é trazido por sua mãe, encaminhado pelo pediatra. Chegam após tomarem três conduções, acompanhados de mais dois filhos que carregam sacolas. A queixa é que João está batendo a cabeça na parede, sintoma preocupante que poderia ser um indício de conduta pertinente ao espectro autista. A profissional faz uma primeira entrevista detalhada, incluindo a avaliação da situação sócio cultural da família e descobre que moram num terreno com outras famílias. Por conta desta movimentação a mãe deixa o menino todo o dia numa cama beliche de maneira que ele não consegue caminhar, o que já sabe fazer desde que completou treze meses. Teme que ele, ao caminhar pelo pátio, saia pelo portão e seja atropelado na via movimentada. A profissional da triagem levanta a hipótese de que o sintoma esteja sendo a resposta a esta impossibilidade de exercício da motricidade e propõe à mãe deixá-lo fora desta cama por duas semanas, marcando retorno e como não retornam na data estipulada, a profissional que fez a triagem liga para a mãe e esta lhe diz: “Dra. ele ficou bom no primeiro dia que o deixei fora da cama! Está correndo feliz! Por isto não retornei! ”
Ainda, diagnósticos na infância não devem ser feitos só a partir de anamnese com os pais. A percepção dos pais sobre os filhos nem sempre é objetiva e existe o risco de que o técnico caia na armadilha de um enfoque exclusivo, num intersubjetivismo das relações familiares, esquecendo ele mesmo da produção singular da criança, ou seja, esquecendo-se que aquilo que acontece com essa criança pode ser muito diferente daquilo que os pais nos explicitam. Como aconteceu no caso da mãe de José, menino de três anos e dez meses. Ela vem à consulta sozinha, apresentando queixas que, num primeiro momento, faz-nos pensar que seu filho seria uma criança com funcionamento psíquico de muita gravidade.
Investigando, descobrimos que ela costumava rodar pelos diferentes setores do hospital, carregando o menino em filas e pelas madrugadas, e às vezes, também levando o marido que dizia ser esquizofrênico: “Todos sabem quem eu sou no hospital!” Com “essa experiência”, quase sempre conseguia um residente inexperiente que lhe solicitava novos exames e a medicava. Esperava em nosso serviço que medicássemos a criança que descrevia como alguém muito doente ‘dos nervos’. Optamos por vincular a mãe à equipe, mesmo ela não aceitando a realidade da criança, pois concluímos que ajudar a criança naquele momento seria providenciar creche para que ela pudesse permanecer mais tempo com outros tipos de vínculos no ambiente social, diferentes dos que estava tendo na família.
A partir de nosso trabalho de intermediação interinstitucional conseguimos que a criança ficasse numa creche e se readaptasse. Nessa fase a mãe tenta suicídio e é atendida no Pronto Socorro do Hospital, em consequência do que ela nos permite providenciar um atendimento psicoterápico e psiquiátrico.
Outro aspecto relevante nos processos diagnósticos da clinica infantil é o trabalho para conseguirmos a adesão necessária para um tratamento a longo prazo, quando a gravidade é logo detectada. Não basta diagnosticar, pois muitas vezes precisamos de um tempo inicial para ajudar os pais obterem condições psíquicas de absorver a realidade de um diagnóstico grave, bem como precisamos observar as reações disso no restante da família. Isto aconteceu no caso de Marcos, de quatro anos, que vem trazido pelos pais que nos falam de uma criança com graves problemas de interação. Eles relatam a situação tentando minimizar os sintomas que de imediato nos configuram um importante quadro de autismo. Insistem num novo exame fonoaudiológico com esperança de encontrar uma etiologia diferente, apesar de terem passado por um excelente profissional da área e reconhecerem o valor do mesmo. Apresentam-se com grande nível de culpabilidade e se desgastam em ataques e recriminações, o que exige uma escuta prolongada e cuidados com eles em várias entrevistas.
Neste ínterim de avaliação, o irmão mais velho faz sintomas de agitação na escola, por isto solicitamos que tragam o irmão para falar do que está sentindo com a mudança dos pais a partir do atendimento de Marcos, buscando ajudá-lo a entender o motivo que deixou seus pais mais ausentes e preocupados. Após este momento de cuidado que a equipe tem com ele, o sintoma na escola desaparece. Neste caso, mesmo com diagnóstico feito nos contatos iniciais, a equipe necessitou seis meses de trabalho para conseguir introduzir a Marcos num tratamento intensivo.
Aspectos conclusivos: processos diagnósticos na infância, particularmente em populações atendidas na rede pública, apresentam um grau intenso de complexidade nas suas variáveis e na eleição de terapêuticas adequadas a cada realidade. O aperfeiçoamento da escuta clinica é fundamental, mas no sentido de ampliar a experiência em diferentes intervenções e não no sentido de simplificá-las, possibilidade que vemos ampliar-se a partir de equipes transdisciplinares. Com este tipo de abordagem conseguem-se intervenções que evitam ou minimizam a cronificação de sintomas e/ou surgimento de patologias psíquicas, além de maior adesão aos tratamentos, evitando peregrinações pela rede de serviços que produzem significativos aumentos nos custos do serviço sem retorno ao paciente e a sociedade. Ao menos informados, que fazem contas pelos valores dispendidos em caixa, pode parecer caro um serviço assim, mas cálculos econômicos facilmente demonstrarão o contrário. Em outras palavras: parece caro, mas fica barato!
Vera Blondina Zimmernann, Psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE/SP, Doutora em Psicologia Clinica-PUC/SP, Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UFRGS e do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP, Coordenadora do Ambulatório de Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental do CRIA (Centro de Referência da Infância e Adolescência/ UNIFESP. Site: www..verabzimmermann.com.br