Parcerias no Trabalho Psicopedagógico

Associação Brasileira de Psicopedagogia  –  Série Medicina & Saúde – A Psicopedagogia em direção ao espaço transdisciplinar

Trocar ideias com profissionais implicados com a educação sempre causa-me entusiasmo e prazer, tendo em vista meu constante pensar em questões relacionadas com esta área. Situo-as a partir de meu percurso desde a psicologia, psicanálise e psicopedagogia, tanto através de experiências clínicas como acadêmicas, individuais e institucionais.

Penso que para discorrer sobre este assunto faz-se necessário, inicialmente, definir como entendemos o termo “parceria”, naquilo que ele implica e abrange.

“Fazer uma parceria”: contribuir com uma parte do todo do conjunto de soluções para resolução de um problema.

Portanto, implica, antes de mais nada, em:

– Cada parceiro ter claro seu papel, seu nível de competência no assunto e, principalmente, seus limites;

– Ter um código de ética comum ao(s) parceiro(s);

– Ter um bom diagnóstico da situação problema: o que está acontecendo, porquê e quais possibilidades de intervenção são necessárias; um plano básico sobre os momentos adequados de cada intervenção;

– Definição clara da parte que cabe a cada um na solução do problema;

Sem estes pré-requisitos, as parcerias correm o risco de fracassarem, com
a tendência de cada parceiro vai ser a de focar a técnica que domina e a disputar o cliente, sem ser a visão do todo necessária para a solução do problema.

Como garantir o seu bom funcionamento?

A primeira questão parece-me estar na formação de cada profissional, se esta capacitou-o a conhecer o todo do fenômeno, saber de todas as variáveis implicadas no mesmo.

Segunda questão e a que me parece tão ou mais importante que a primeira está relacionada a postura do profissional em relação ao conhecimento. Se ele é capaz de ter consciência que não há uma verdade, que ninguém é dono da verdade e que, apenas trabalhamos com níveis de certeza.

Também, ser um parceiro eficiente implica, principalmente, em ter uma estrutura emocional capaz de dividir, aceitar limitações, permitir que o outro entre com a sua parte, entendendo-a como complemento.

Podemos exemplificar alguns momentos de nossa prática profissional, momentos nos quais julgamos que o exercício das parcerias coloca-nos estas questões de forma mais explícita.

– Vários tratamentos ao mesmo tempo – parceiros que esquecem a visão do todo, não sabem avaliar prioridades, não conseguem planejar momentos de intervenção, apesar de serem competentes nas suas tarefas.

Acontece comumente no exercício clínico, quando o cliente apresenta algum tipo de problema que necessita a entrada de várias especialidades, como no caso de uma criança com distúrbio global de desenvolvimento. Muitas vezes tem-se a entrada inicial do neurologista, segue-se psicopedagogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta ou psicólogo. Quase sempre o quadro apresenta-se com requisitos de várias intervenções. Porém, aqui se coloca uma questão básica: como, – a partir do diagnóstico que inclui desde a patologia a ser tratada, até a situação financeira e emocional da família, ou seja, como equacionar todas as variáveis subjetivas e de realidade – eleger o plano de tratamento mais adequado.

Além de ter que se avaliar uma realidade objetiva em relação ao financeiro familiar e ao tempo implicado nestes atendimentos, é fundamental pensarmos na questão vincular ou transferencial, como denominamos na psicanálise. Manter diferentes transferências ao mesmo tempo não é produtivo para um sujeito em constituição, pelo contrário, é desestruturante. Há que se ter todo o cuidado de eleger o atendimento prioritário, mesmo sabendo-se da necessidade de outras intervenções; planejar a entrada de outros a partir das prioridades estabelecidas; e, quando for o caso de mais de um profissional estar em cena, discutir e eleger um deles para que seja o elemento organizador da situação, ou seja, aquele que se coloca como referencial norteador, tanto da criança como da família.

Não é difícil perceber que este tipo de situação coloca em pauta a capacidade de fazer parceria de cada profissional implicado. Na maioria das vezes é indiscutível a capacidade técnica específica de cada um deles, mas na hora de avaliar o todo, adequar o melhor procedimento no plano de tratamento, entram as dificuldades que analisamos no início do texto. Em muitas situações, os profissionais implicados nem conseguem reunirem-se para conversar sobre todas as variáveis implicadas, muito menos para discutir abertamente o que fazer prioritariamente. Cada um vai intervindo com o olhar técnico no qual se autoriza, desconhecendo os prejuízos que isto acarretará para o sujeito psíquico implicado.

No decorrer de uma intervenção clínica, quer da psicopedagogia ou da psicologia e psicanálise, quando surgem as diferenças entre “construção” de um sujeito (tarefa que pode ser feita pela psicopedagogia) e desconstrução” (tarefa do psicólogo ou psicanalista);

Nestas situações precisamos diferenciar no diagnóstico a etiologia da dificuldade apresentada, ou seja, se é de natureza de um “transtorno” na constituição psíquica ou de um “sintoma”(*).

Quando falamos em transtorno estamos pressupondo um sujeito que ainda não constituiu um aparato psíquico capaz de fazer uso de mecanismos de repressão, ainda funcionando com descargas pulsionais diretamente no corporal; ainda não implicados por um desejo, uma demanda que os norteie. Para estes é necessário que se crie um espaço de escuta capaz de fornecer-lhe investimentos narcísicos que o possibilite estabelecer-se na diferença entre ele e o outro, entre o dentro e o fora. Não estamos falando em patologias psicóticas, mas em sujeitos com insuficientes mecanismos neuróticos.

Já quando falamos em “sintoma”, pressupomos um aparato psíquico que funciona segundo as leis da repressão. Neste caso, suas dificuldades tem a ver com investimentos de cargas libidinais em certos pontos de conflitos intrapsíquicos, resultando em retirada de outros, o que provoca sintomas.

Várias situações de dificuldades de aprendizagem apresentam-se externamente idênticas, mesmo tendo diferentes etiologias. Por ex: a criança que não é curiosa, que não apresenta aquilo que denominamos em psicanálise de “impulso epistemofilico”, pode estar nos falando de dois diagnósticos diferentes:

1) Transtorno na constituição psíquica: um sujeito que ainda não se constituiu suficientemente para implicar-se com seu desejo, ainda apresenta-se indiscriminado em relação ao desejo do outro.

2) Sintoma na constituição psíquica: um sujeito que por alguma questão conflitiva intra-psíquica, retira libido da aprendizagem para evitar uma situação de sofrimento e desequilibrio libidinal.

No primeiro caso, uma intervenção terapêutica implica na entrada de um profissional cuja formação pressupõe conhecimento de como um sujeito se constitui, de como se instalam os processos simbólicos.

No segundo, implica na entrada de um profissional capaz de manusear técnicas de desconstrução de significações.

Estamos falando, então, de situações onde a psicopedagogia e a psicologia encontram dificuldades em situar seus limites, ou seja, situações onde as parcerias tem dificuldades em definir suas áreas de atuação. Acredito que isto aconteça, principalmente, por não conseguirem sempre fazerem diagnósticos adequados de cada situação clínica, tanto por estas apresentam-se de forma difícil de se circunscreverem, como também por haver insuficiência nas formações respectivas destas áreas profissionais.

Penso que, apesar de estarmos falando numa área de conhecimento onde os saberes apresentam interseções e limites difíceis de serem traçados, é fundamental termos claro algumas especificidades de cada tarefa, para que nosso cliente possa receber a ajuda técnica adequada. Novamente, neste tipo de parceria, a formação e a capacidade de cada um ter consciência de seus limites é fundamental.

3) Parcerias numa escola

O que se observa comumente nas instituições escolares são falhas nas parcerias devido a dificuldade dos parceiros terem visão global das necessidades e do funcionamento dinâmico da estrutura na qual estão inseridos.

É comum perceber-se posicionamentos parciais, ou do lado do aluno, ou do lado do professor e mesmo da administração. Isto, além de dificultar o desenvolvimento das tarefas específicas de forma mais adequada, impede que os parceiros unam-se para pensar questões mais amplas, pertinentes ao todo da instituição. Poderíamos dizer que há uma tendência dos parceiros pensarem-se enquanto empregados da instituição, portanto, não responsáveis pelo desenvolvimento do todo da mesma, esquecendo-se que o “todo” não é uma determinada escola, mas a educação enquanto causa maior.

Desta forma as estruturas escolares ficam estacionadas num nível de resolver apenas o aqui e o agora, impedidas de pensarem resoluções de questões futuras, novas soluções para problemas educacionais que estão emergindo.

Com estes breves exemplos, tentamos recortar algumas das dificuldades que percebemos no desempenho de parcerias no campo do psicopedagógico, dificuldades que não são privilégio desta área, mas acredito existirem em todos os níveis e tipos de profissões.

Finalmente, gostaria de ressaltar que uma das dificuldades mais importante no exercício de parcerias está na posição onipotente do ser humano, ou de ser representante da “verdade” capaz de dar conta de todas as respostas envolvidas na solução de determinado problema, ou que se juntar-se a muitos parceiros chegará a equação definitiva da solução. Antes de qualquer atributo, um parceiro precisa ter a humildade de reconhecer-se limitado, bem como também reconhecer o conhecimento humano como limitado. Assim, o trabalho de parcerias pode ter um bom começo.


(*) O conceito de “transtorno” e “sintoma” é trabalhado por Silvia Bleichmar nas “Origens do sujeito psíquico” Artes Médicas, 19, p. ; também apresento discussão deste tema em relação as dificuldades de aprendizagem na minha dissertação de mestrado em Psicologia Clínica, “O Transtorno na constituição psíquica, seus efeitos no corpo e na alfabetização” – PUC-SP-!997.

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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