Quando chegamos com a ‘peste’, cada um se defende como pode! O psicanalista na educação e na saúde.

JORNADA DE PSICANÁLISE

CAMINHOS DA FORMAÇÃO E DA TRANSMISSÃO

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae/SP
Abril/2008

Proponho que me acompanhem numa viagem, passeiem comigo por um território estranho, espaço no qual eu, enquanto psicanalista, vou entrar sem ser convidada. Tenho apenas um passaporte institucional que legitima a viagem e uma autonomia que me deixa decidir a bagagem que levarei. Escolho a bagagem com a qual me implico enquanto psicanalista, apesar de saber que por onde eu andar neste espaço, as pessoas tenderão a fugir dela, temendo contaminar-se com uma doença que pressupõem fragilizar posturas e confundir o pensamento lógico necessário a tarefa a qual se dedicam. Sintetizando, na bagagem carrego ferramentas que abalam certezas narcísicas de quem porta um saber engessado pela onipotência.

Entro na sala de mais ou menos 25 alunos de medicina, travestida de professora de Psicologia Médica e lá estão todos: muitos deles recostados confortavelmente nas paredes da sala, alguns me olhando com indiferença e outros com desafio e até com ares de ironia; alguns sentados como bons alunos esperando uma transmissão de saber, outros folheando livros e cadernos.

Qualquer menção de organizar melhor um clima propício a reflexão é inútil: as cadeiras são fixas e enfileiradas, portanto, nem a idéia de ‘rodinha’ é possível, o que poderia aplacar a tensão da minha tarefa, a tensão do desafio que me aguarda: “Sobre o que vocês gostariam de conversar hoje?” Pergunta que sustenta o objetivo deste espaço no currículo, e que é a discussão da relação médico-paciente a partir das experiências clinicas que eles vivenciam naquele momento da formação, no caso, segundo ano de medicina.

Minutos de ansiedade, barulho, olhares que se cruzam e surge uma questão: “um colega de outra turma precisou dizer para um paciente que ele tinha AIDS.” Respiro aliviada! Enfim, tenho um começo!

Invisto no avanço da questão e as associações aparecem, lembrando-me dos jogos da clinica com crianças, onde os personagens são colocados distanciados da vida psíquica dela e meu trabalho é conversar muito com estes personagens, até que num momento futuro, quem sabe, a criança consiga identificá-los com seus próprios conflitos.

Neste ‘esquentamento’ que dura uns 15 minutos, o grupo de fundo da sala irrompe em risadas incontidas… E agora, o que faço com a cisão instalada? Um desamparo me invade! Por segundos, penso em apropriar-me da condição ‘professora’ e mandá-los sair da sala… Socorro, Freud! Tudo bem, eu sei que eles estão mais assustados do que eu!

A bagagem de turista que carrego ainda não foi aberta e eu me restabeleço, renunciando ao lugar de professora que os expulsaria da sala, convocando-os, simpaticamente: Nós também gostaríamos de rir com vocês! Podem nos contar? Um misto de confusão e burbúrio é instalado, até que um deles conta:

“Sabe professora, nós lembramos de algo que aconteceu este ano! Fomos para uma praia onde alugamos uma casa de pescador; embaixo da casa havia uma gata com filhotes novos que estavam começando a andar. Num dia pela manhã o ‘fulano’, ao sair de carro para buscar pão, atropelou e matou um gatinho que estava embaixo da roda. (um murmúrio de angústia se faz ouvir no grupo) Nós colocamos o gatinho morto no lixo, mas depois disso não conseguimos mais ter paz e tivemos que voltar para SP: a gata ficava miando e procurando o gatinho de dia e de noite! (eles riem compulsivamente e os colegas passam a intervir com todos os tipos de sentimentos)

Eu os escuto e enquanto isto, olho também para minha mochila de viajante – vejo minha bagagem aberta e espalhada na sala – o meu lugar estabelecido! Começo a oferecer o que trouxe!

E eles passam a falar do medo de perder um paciente, da angústia de errar, da dificuldade de comunicar uma notícia de morte ou doença grave… Alguns continuam a rir compulsivamente, sob os protestos e indignação de outros; lágrimas nos olhos de muitos, olhos cabisbaixos em outros, palavras organizadas em poucos. Consigo vislumbrar a cisão desfeita e a peste disseminada: o sofrimento está ali e o ser humano faz-se mais integrado! Sujeitos mais apropriados de um Eu condenado a pensar e investir, conforme conceitua Aulagnier.

Termina o tempo, vou saindo da sala ainda sob o impacto da tensão do desafio e alguém me chama: “Professora, a senhora esqueceu de fazer a chamada!” Volto agora como professora, e termino minha tarefa institucional.

Mas antes de discutirmos esta cena usando a nossa língua materna, a psicanálise, ainda gostaria de levá-los para uma outra viagem, também para um território estranho, onde a cena é outra, mas o desafio é igualmente tenso:

Estou numa sala com educadores, sala na qual a ‘rodinha’ já está pronta quando entro e ao contrário da cena no território anterior, todas me olham avidamente e a leitura que se espalha naqueles olhares é clara para minha escuta clinica: “Como te admiramos! Diz-nos o que devemos fazer com nossas questões! Tu tens a verdade!”

Uma cilada daquelas que conhecemos bem ao conhecermos os caminhos da identificação e da transferência! Aqui, neste espaço, o desafio inicial é sobreviver a esta sedução, sem deixar-nos tragar pela voracidade e desamparo implícito neste tipo de demanda transferencial! O caminho a ser percorrido pelo analista é devolver o pedido sem desamparar os sujeitos, o que se constitui num desafio difícil, cheio de sutilezas técnicas!

As questões são muitas, em excesso! A agressividade do Joãozinho, a lentidão da Maria, o autoritarismo da diretora, a inadequação de um colega a omissão do governo… O pedido que escuto é de que eu me faça cargo e faça milagres! ‘Tens que ter uma resposta!’, é o que escuto nas entrelinhas!

Pelas arestas do material vou tateando, tentando resgatar algum pensamento que denuncie uma possibilidade de apropriação da tarefa, mesmo sabendo e sentindo a pressão grupal e os problemas reais aos quais não posso desconhecer e desconsiderar. Não é fácil devolver o material para que os sujeitos se façam responsáveis, como faço numa situação singular! Enquanto estou naquele ‘enrosco’ penso como seria mais fácil ocupar o lugar do saber e dar uma linda aula de psicopatologia, por exemplo.

Da clinica eu conheço as profundezas perigosas das águas para onde um canto de sereia pode nos conduzir! Sei também o gosto de ser vomitada após os momentos de voracidade nos quais nos deixamos engolir! O gosto amargo destes fracassos não paga os minutos de satisfação narcísica usufruídos a partir de condutas vindas deste tipo de idealização com o qual estou me deparando nesta cena.

As arestas vão se fazendo buracos e eu vou, devagarinho, despejando minha bagagem- a peste vai penetrando e se fazendo corpo enquanto escuto: “Eu pensei em fazer isto!” “Eu observei aquilo…” “Acho que podemos tentar fazer desta maneira!” Quase como uma náufraga, resgato aquelas palavras como tábuas de salvação e vou me apoiando, fazendo força para aparecerem outras metáforas salvadoras de minha tarefa.

Os olhares já não estão mais em mim, mas no grupo: entre elas se fazem pactos e as forças singulares se fazem aparecer e crescer!

Saio aliviada, com a certeza de ter regado mais uma vez um lugar no qual é possível os sujeitos se tornarem pensantes, implicados com suas subjetividades!

Agora podemos voltar para nosso território, a clinica psicanalítica, recompondo-me para dividir com vocês algumas reflexões:

Verifiquei, após muitas experiências, que alguns espaços apresentam reações mais ou menos organizadas e semelhantes na forma como nos escutam e produzem respostas frente ao saber psicanalítico e mesmo, à presença do psicanalista. São transferências que, se escutadas e entendidas, podem nos dar pistas para nosso trânsito naquela tarefa, assim como fazemos na clinica. Ressalto que uso a palavra trânsito para este tipo de atividade, porque quando ocupo funções de consultora, professora e supervisora, procuro manter-me num espaço dentro-fora, privilegiando um olhar que me possibilitasse não ser capturada pela instituição, mas que possa manter o privilégio do olhar clinico que considero minha função básica.

A presença do psicanalista no campo da educação tende a provocar uma transferência peculiar: gera, quase sempre uma busca de identificação idealizada, uma tentativa de incorporação que considero defensiva à angústia do desconhecido que aponta para que o sujeito aproprie-se de seu pensamento e de soluções para os problemas com os quais se confronta. A figura do analista é vista entre movimentos oscilatórios de idealização e de raiva, o que exige do analista muito cuidado, principalmente num primeiro momento onde parece haver grande demanda de sua presença e ação, mas que nada mais é do que uma cilada daquilo que conhecemos como identificação não possível de ser metabolizada, como ocorreria em movimentos do processo secundário, mas sim, um desejo onipotente, uma incorporação primitiva.

Na educação se tem como saber validado e inquestionável a influência da subjetividade na aprendizagem. Isto quer dizer que o professor, para ser eficaz, precisa conhecer minimamente a subjetividade dos alunos, para organizar estratégias e abordagens adequadas. Esta necessidade faz com que ele demande o conhecimento psicanalítico, o que reforça a busca de orientações milagrosas e alguma forma de retirar os efeitos sintomáticos da subjetividade do aluno sobre a sua tarefa de ensinar.

Este milagre também pode ser buscado na medicação, mas ela não tem a mesma força que tem no espaço da medicina, pois em termos de aprendizagem, resolver sintomas com um remédio não garante a eficácia do processo como um todo, porque um remédio não garante a exclusão dos dinamismos psíquicos alterados num processo de aprendizagem. Por exemplo, uma criança psicótica medicada, mesmo com diminuição de sintomas da estrutura, continua com a especificidade de sua conduta e precisa de estratégias educacionais diferenciadas, portanto, não exime o professor de buscar um saber sobre a subjetividade do caso. O mesmo acontece com uma hiperatividade ou desatenção.

O psicanalista num trabalho com educadores precisa entrar com postura que diminua esta idealização que é fruto das suas inseguranças frente ao psiquismo desconhecido dos alunos. Também, diminuir a culpabilidade dessa ignorância, trabalhando no sentido redimensionar as suas responsabilidades frente a estas subjetividades, mostrando os limites da sua tarefa. Trabalhado isto, diminuem-se as idealizações e eles podem se implicar e trabalhar dentro de suas reais possibilidades, usufruindo de doses narcísicas produtivas.

Uso o conhecimento psicanalítico enquanto especificidade teórica a ser transmitida em momentos de muita ansiedade grupal, estratégia que reorganiza os grupos para um olhar mais objetivo para a tarefa. O trabalho realmente eficaz é fazer emergir o saber sobre o sujeito aluno, mas um saber proveniente da prática educativa.

No campo da medicina ocorre algo bem diferente: as reações marcantes são de atitudes fóbicas, desqualificação e cisão entre o saber médico que ostentam e os mecanismos subjetivos.

Olham-nos, inicialmente, como um estranho a ser evitado e contestado, vendo em nós uma ameaça de destituição de certezas que pensam validar suas identidades profissionais.

Na medicina, apesar do médico saber intelectualmente da importância da relação médico x paciente, ele também sabe o quanto o paciente demanda por um caminho de dissociação entre corpo e mente, buscando ansiosamente um remédio milagroso. A demanda do paciente em conhecer a relação de seu psiquismo com seu corpo é, quase sempre, frágil, e isto reforça a fuga do médico em confrontar-se com esta realidade subjetiva. As defesas dos profissionais são reforçadas ainda porque o remédio tende a resolver os sintomas, portanto, a eficácia do profissional não é questionada como é questionada com quem trabalha com a educação. Por exemplo, tristeza medicada mascara conflitos e protege o médico do confronto com o fracasso, independentemente da etiologia do sintoma depressivo.

Outro aspecto importante que potencializa mecanismos de cisão entre o corpo e a subjetividade é o fato de que o médico lida com a morte e isto lhe empurra para mecanismos de negação em maior grau que outros profissionais, levando-os a também se utilizarem, em alguns momentos, de mecanismos de recusa, nos quais a onipotência e a arrogância se fazem presentes, principalmente quando confrontados com desafios de pensar a subjetividade das suas tarefas.

Por tudo isto, penso que as estratégias de abordagem no campo da medicina devem ser pensadas a partir do conhecimento biológico e de uma linguagem pertinente a este saber ou a um saber leigo, de tal maneira que o profissional possa associar com os aspectos subjetivos e pessoais, sem que seja esta forma imposta como raciocínio. Como exemplo de linguagem não adaptada, cito uma situação que alunos de medicina me relataram, ridicularizando uma colega nossa, que ao meu ver, também fez uso de uma posição que denuncia um raciocínio não compatível com a proposta psicanalítica: esta profissional, numa situação na qual uma mãe queixava-se do filho ser muito quieto, interpreta o sintoma como conseqüência da gestação indesejada e das tentativas de aborto feitas pela mãe, raciocínio que eles não aceitam e ridicularizaram. Como entendo uma abordagem para este tipo de questão de forma que produza reflexão produtiva para estes profissionais? Na minha experiência, vou tentando recuperar com eles os processos bioquímicos e metabólicos de alguém que tenta expelir algo do corpo, que está muito angustiado, irritado ou com muitos medos da situação. Paralelamente, ajudo-os a construir uma cena na qual uma mãe está feliz, tranquila, já fantasiando como seria este filho tão esperado. Não me preocupo em fazer raciocínios lineares, cartesianos, apenas desenvolvo um raciocínio que mostre a eles a infinidade de variáveis biológicas possíveis nesta cena, tentando fazer com que possam perceber que no corpo daquela mãe e do feto que se desenvolve, certamente ocorreram comunicações biológicas intensas e que isto pode marcar de alguma forma a vida subjetiva dos dois.

O mais importante é que possamos deixá-los com menos certezas e menos defesas para reflexões que integrem o corpo e o psiquismo.

Em ambos os territórios, o psicanalista necessita criar metáforas na língua na qual circulará: na educação, por ex, podemos falar em uma mudança de olhar: do sintoma para a diferença, tentando focar nos mecanismos subjetivos sem rotulação da psicopatologia que engessa o trabalho pedagógico; ‘abrir-se sem se despedaçar’ para falar da saída de padronizações dos programas de ensino, ‘emprestar-se sem perder-se’, para nominar funções que assumem cuidados, mas que não são iguais a função materna, muitas vezes confundida neste espaço.

Com os médicos, falar da constituição do psiquismo e do circuito pulsional, usando metáforas da vida comum: todo ser humano precisa começar a vida sendo rei, e aos poucos, perder o reinado, mas não perder a majestade. Nesta metáfora, por exemplo, podemos falar da constituição do psiquismo e mesmo, da psicopatologia, sem usar o jargão psicanalítico.

Considerações gerais:

Trata-se, no cerne da questão que abordamos, de defesas frente a um confronto com o novo, desconhecido perigoso. O contato com uma dimensão de subjetividade, mostra-se, quase sempre, ameaçador pois coloca em jogo a dicotomia conhecido/desconhecido e remete à volta do reprimido, evocando aquilo que causa terror ao ser pensado: a inquietante estranheza (Freud, 1919), sobressai-se na cena. A angústia de confrontos com separações é revivida, ocasionando regressões narcísicas e /ou defesas mais arcaicas, inclusive a clivagem.

Pensamos que todo o confronto de um sujeito com um saber estruturado e diferente, tende a provocar reações semelhantes, dependendo da constituição psíquica de cada um.

O que focalizamos neste trabalho são as semelhanças de determinados sujeitos agrupados conforme um saber, saber este que também organiza determinados discursos, com reações mais ou menos unificadas frente aos processos subjetivos.

Por tudo isto, entendo que não basta sabermos psicanálise para transmiti-la- deve-se saber para quem e quem são estes sujeitos que pretendemos alcançar com nossa proposta. Antes de qualquer coisa, transformar nosso saber numa linguagem possível de ser acessada pela realidade que pretendemos transitar.

O trânsito deve ser pensado de forma a não possibilitar a cisão entre o psicanalista e o profissional que está sendo trabalhado: o saber psicanalítico deve ser passado de forma a organizar-se como uma ferramenta de aperfeiçoamento do fazer específico do profissional, nunca algo que sugira que o fenômeno psíquico seja mais importante que o fenômeno do qual estes sujeitos se ocupam, o que seria apenas a tradução de um embate narcísico entre saberes.

Desta forma, nós também precisamos lidar com o estranhamento da diferença do novo discurso, o que nos deixa igualmente desamparados. A associação que produzi no título do trabalho, lembrando Freud : ‘ Eles não sabem que eu estou lhes trazendo a peste! [1] -,representa uma tentativa de busca identificatória frente ao meu desamparo quando em confronto com o desconhecido que me hostiliza e questiona o meu saber enquanto psicanalista!

Trabalhar a psicanálise fora do setting, muitas vezes, com sujeitos que não demandam nosso saber, em alguns momentos parece masoquismo da analista, mas prefiro pensar que simplesmente seja, uma psicanalista que, em alguns momentos de sua vida profissional, sente-se convocada a levar aos diferentes grupos o vírus da reflexão sobre o fazer de cada um, atitude que acreditamos possibilitar a estes diferentes fazeres, operarem como atos subjetivantes. Em síntese, trata-se de uma aposta em posturas profissionais despojadas da necessidade de fazer valer suas certezas paradigmáticas, posturas que inibem a riqueza de movimentos psíquicos em direção a sublimação, movimentos que constituem o cerne da evolução singular e dos grupos.

[1] LACAN, Jacques. Os Escritos. A coisa freudiana. “É assim que o dito de Freud a Yung, de cuja boca ouvi quando, ambos convidados da Universidade Clark avistaram o porto de Nova York e a célebre estátua que ilumina o universo: eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste.” P. 404.

Vera Blondina Zimmermann
Psicanalista, Membro do Depto de Psicanálise do SEDES SAPIENTIAE, Dra. em Psicologia Clinica-PUC/SP

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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