“Projeto Singular”: Uma estratégia para inclusão escolar do “aluno difícil”

No processo de constituição psíquica os significados do sujeito vão sendo organizados de tal forma que criam uma determinada fantasmática que o representa e o organiza, o que vem a caracterizar um funcionamento psíquico que o discrimina dos seus semelhantes. Portador de uma organização particular dos significantes que introjetou a partir das funções parentais, esse sujeito é capaz de melhor definir seus caminhos identificatórios; consequentemente, está mais capacitado para organizar seu projeto de vida, bem como revela uma maior tranquilidade nas suas escolhas e definições, entre elas a profissional.

O mesmo não ocorre quando ocorrem falhas ou ponto de fragilidade nos processos de subjetivação, o que prejudica a construção de um mito individual daquele sujeito, o responsável pela sustentação de sua vida fantasmática e de seu narcisismo. A Psicanálise entende que, pontos de fragilidade tendem a advir a partir de processos falhos de narcisização parental, onde as redes de significações oferecidas ao sujeito são capazes de organizar suficientemente o seu psiquismo. Chamo aqui o “aluno difícil”, o sujeito portador deste tipo de falhas, cujos prejuízos se verificam na sua aprendizagem escolar.

O “aluno difícil”, para o qual foi planejada e desenvolvida esta estratégia1, geralmente passou, sem sucesso, por diferentes profissionais, tratamentos e escolas. Apesar de terem percorrido vários caminhos em busca da resolução para os problemas escolares, quase sempre apresentam diagnósticos em aberto em relação as suas dificuldades de aprender.

Predominantemente, apresentaram no início da escolaridade, impossibilidades de usarem o corpo como instrumento para aprendizagem. São portadoras de uma imagem corporal desorganizada, com conseqüentes dificuldades de organização dos elementos psicomotores e perceptivos que envolvem o processo de alfabetização. Além disso, quase sempre apresentam também um grau acentuado de agitação e desatenção, o que ocasiona também, dificuldades sociais de conduta, variando em intensidade e diversidade.

Entre as reações que mais se fazem notar são as que ocorrem frente à frustração. Após fracassos e trocas de escolas, apresentam características de negativismo e, às vezes, de agressividade acentuada. Comportamentos de recusa de produção através de agressão ou apatia intensa são mais comuns; são poucos os momentos nos quais pode-se observá-los implicados com persistência numa tarefa ligada a conteúdos escolares, mesmo que tenham facilidade no conteúdo proposto.

É comum se ouvir comentários de professores e técnicos a respeito de um ou de outro aluno:”Parece que ele não quer pensar!”. No senso comum esta constatação poderia ser traduzida como “preguiça de pensar aquele conteúdo”, ou mesmo, “birra com alguém”. Mas o fenômeno parece ser de outra natureza, já que não se trata de recusar um tipo de produção por agressão a alguém e aceitar uma outra produção que não faz sentido a quem se pensa que ele quer agredir.

A Metapsicologia de Piera Aulagnier fundamentando o “projeto singular”

Aulagnier entendeu a teoria psicanalítica como “uma tentativa de esclarecer as condições necessárias para que o Eu possa existir e a atividade de pensamento seja possível”, acrescentou novas abordagens de trabalho à constituição do Eu e deu ênfase à problemática das identificações. (Hornstein, 1994:360-363) Sua abordagem valoriza o registro sociocultural na constituição do Eu, o que fundamenta a estratégia que discuto neste trabalho.

Recortei da sua metapsicologia² os conceitos de “realidade histórica”, “contrato narcisista” e de “projeto identificatório”, conceitos que penso fundamentar a estratégia ‘Projeto Singular’ por meio do qual a instituição procura dar melhores condições ao Eu do aluno para que possa melhor pensar.

Para Aulagnier, o Eu é um historiador e sua historização depende do projeto identificatório, e este, por sua vez, mesmo ligado ao passado, também sempre pode ser reelaborado através de um trabalho no presente, com participação do social agindo no intrapsíquico. (Aulagnier, 1975: 154-160) Entendo que o social, do qual fala esta autora, também pode ser representado pela instituição escola.

A realidade histórica, como entende Aulagnier, é o conjunto de vivências do sujeito na primeira infância, vivências que lhe proporcionam experiências afetivas, somáticas e psíquicas. Esse primeiro capítulo da história do sujeito, onde ele recebe significações, será o mote sobre o qual ele desenvolverá sua própria história, tentando metabolizar o recebido e tentando superar essa experiência de ser possuído por um outro. Será no discurso das figuras parentais que o Eu encontrará seus primeiros enunciados identificatórios: termos que nomeiam o afeto e termos que designam os elementos de sistema de parentesco para uma dada cultura. O sujeito se apropria destes enunciados e seus efeitos serão posteriormente produzidos, ou seja, o Eu investirá sobre este alicerce.

Portanto, o sujeito necessita ter sido pré-investido libidinalmente peIas figuras parentais que lhe transmitem uma série de enunciados identificatórios, designando-lhe a partir disso, um lugar futuro. Piera denomina este momento de ‘contrato narcisista’: entende que há um aspecto individual e outro social, no percurso da identificação ao projeto identificatório. Para ela, o investimento libidinal que os pais dirigem a criança, antes e após nascimento é necessário, mas, não suficiente. A criança também necessita do investimento do grupo social: “O investimento pelo grupo antecipa o investimento do grupo pela criança” (Aulagnier 1975: 151). Será no discurso social que a criança poderá ou não reconhecer aspectos que lhe permitam projetar-se em um futuro passível de investimento, no qual ela realizará seu projeto identificatório.

O contrato que liga o casal parental ao meio influencia o espaço qual o Eu da criança se constitui e toma-se mais importante quando adquire a autonomia na relação com o social. Desta forma, a criança passará a buscar um grupo que represente estes ideais e que lhe reconheça enquanto portadora daquilo que lhe foi pré-investido.

O Projeto Identificatório, nas palavras de Aulagnier, conforme leitura de Violante consiste nos “enunciados sucessivos pelos quais o sujeito define (para si e para os outros) seu anseio identificatório, ou seja, seu ideal” (Violante, 2001: 57) Nas palavras de Aulagnier, o projeto designa a resposta que o sujeito forja para si, cada vez que se pergunta o que ele é (ou, que é ‘eu’) (Aulagnier, 1975: 216).

O momento inicial do projeto identificatório do Eu, segundo Aulagnier, precede a dissolução do complexo de Édipo e caracteriza-se dependência da idealização dos primeiros objetos, esperando tomar resposta do que ele acredita ser o desejo materno. Já está implicado a temporalidade, mas ligada ao ideal materno. O segundo momento do projeto identificatório, apesar do sujeito já estar ancorado no ‘ter’, passa a ‘ser’. Os objetos do passado são reencontrados e a ideia é: “Quando eu crescer, eu me tornarei aquilo que eu fui.”

A mãe, ao interditar seu desejo incestuoso pelo filho, protege a criança, confrontando-a com a castração, com os limites de seu poder, com sua sujeição ao desejo do pai e à lei. Assim, o filho investe no futuro, ou seja, abandona o desejo edípico substituindo-o pelo projeto identificatório do Eu. Portanto, o projeto identificatório é uma espécie de troca do drama edípico pelos anseios identificatórios de um ideal para o Eu. Com essa troca, passa a predominar no sujeito a angústia de castração ou angústia de identificação, ou seja, o Eu passa a temer perder referências identificatórias.

A partir desse momento de identificação simbólica, as perguntas que o sujeito se faz sobre si mesmo já não são respondidas pelo outro, mas sim pelo próprio Eu, a partir da projeção de um estado e de um ser que ele foi no passado. Porém, é preciso que ele aceite a diferença entre o que é e o que queria ser, projetando para o futuro este encontro; entre o Eu futuro e o Eu atual deve haver uma diferença que representa a prova da castração no registro identificatório, prova que deve deixar intacta a esperança narcisista do encontro futuro entre eles.

“Eu constituído”, segundo Aulagnier, é um Eu capaz de assumir a experiência de castração, consequentemente, a renúncia ao atributo da certeza, o que significa: ele espera tornar-se uma imagem valorizada por ele e pelo meio, ou por um subgrupo que ele valoriza. A esperança de vir a ser esta imagem também é fundamental neste processo que culmina com a constituição do Eu. O declínio do complexo de Édipo também implica em que o sujeito invista em emblemas identificatórios ligados ao discurso do meio, e não só do discurso de alguém único.

O projeto identificatório, portanto, é a construção de uma imagem ideal que o Eu se propõe a si mesmo. Esta imagem pode aparecer num futuro como imagem do reflexo daquela imagem que lhe foi dada em espelho. Em outras palavras, o Eu também é resultado do reflexo, organiza sua demanda identificatória a partir dele, ou seja, do narcisismo infantil: ser o objeto de desejo materno. Ao abandonar este tipo de busca de satisfação presente por meio da dissolução do Édipo, esta imagem ideal não será mais produto do desejo de um outro Eu apenas. A partir daí, sempre haverá uma diferença entre o Eu futuro e o Eu presente, onde predomina “a esperança narcísea de um auto-encontro, sempre postergado, entre o Eu e seu ideal, que permitiria a cessação de toda a busca identificatória” (7).

O projeto oferece ao Eu a imagem futura na qual ele se projeta, preservando os enunciados passados, que são parte da história vivida e da qual ele se constrói como relato. Há uma permanente reconstrução desse relato e parte da história do Eu representa o Eu inconsciente. Neste percurso, segundo Aulagnier, o Eu atual necessita ter esperanças de vir a ser a imagem identificatória valorizada pelo sujeito e pelo meio, ou por um subgrupo cujos modelos são privilegiados pelo sujeito.

‘Projeto singular’: uma intervenção nos modos de representação do Eu para minimizar os obstáculos existentes na atividade de pensar

Entendo que o sujeito para o qual pode beneficiar-se com um ‘projeto singular’ na escola, apresenta-se com prejuízos na organização de sua realidade histórica, no seu contrato narcisista e consequentemente no seu projeto identificatório. Quando este sujeito, no seu percurso de vida, encontra dificuldades na escolarização, desorganiza aspectos do seu contrato narcisista com sua família e o seu grupo social, fazendo-o sentir-se excluído dos ideais que lhe foram projetados. Consequentemente, revela dificuldades para organizar seu projeto de vida a partir de sua realidade histórica.

O que denominei de ‘projeto singular’ e que fundamenta uma metodologia de trabalho desenvolvida pela escola desde sua fundação, é uma tentativa de ajudar o sujeito aluno a ordenar aspectos de sua subjetividade, por meio de atividades psicopedagógicas organizadas a partir de informações de sua vida passada e atual. A equipe empenha-se em fazer um trabalho de síntese e apreensão dos dados familiares mal simbolizados pelo sujeito e procura absorvê-los no contexto psicopedagógico, organizando uma cena de aprendizagem onde o sujeito possa vivenciá-los a partir de um modo de representação psíquica que lhe seja possível absorvê-la e, a partir disso, posteriormente, pensá-la, apropriando-se dela.

Isso se traduz numa tarefa de capturar significantes destes sujeitos a partir das histórias de suas vidas, contadas e observadas, e tentar introduzir isto no contexto da cena de aprendizagem, mesclando e/ou adaptando com a informação que ele necessita assimilar.

Esses significantes que tentamos recuperar podem ser, às vezes, cultura perdida, restos de vivências, de preferência integradoras e tendem a funcionar como disparadores para se criar a ponte com a informação necessária a ser passada.

Isso define para a tarefa um lugar de intérprete a ser ocupado pela instituição em relação ao sujeito. Observe-se que não se trata de uma função onde a Instituição apenas fica representada pela metáfora de cuidados maternos, conforme conceito de Winnicott, mas justamente, vai tentar recompor partes daquilo que fracassou quanto à leitura apropriada do traumático.

Trata-se de uma estratégia com um diferencial em relação ao que se denomina ‘projeto’ numa escola convencional: não se trata apenas de uso de signifícantes culturais a modo dos projetos realizados na escola convencional e nem apenas de um aproveitamento daquilo que é trabalhado na teoria das Inteligências Múltiplas fundamentadas por Gardner.

(4) Isto porque, verifica-se que na população da qual falamos, não funciona usar apenas estratégias que fiquem no campo da motivação e das aptidões; estas estratégias motivacionais são importantes e aproveitadas num contexto psicopedagógico, mas não suficientes, pois estes sujeitos apresentam-se fragilmente inseridos nos significantes culturais e implicam-se pouco com suas aptidões. Por exemplo, pode-se realizar atividades pedagógicas e culturais em torno de um significante social, como Festa de São João, Independência do Brasil, etc., mas, para que realmente se consiga efeitos de subjetivação com este tipo de aluno acima descrito, precisamos trabalhar singularmente a significação disso que está sendo oferecido e construir uma ‘ponte’ com o significado social. Se não for feito um trabalho de construção do que estamos chamando de ‘ponte’ entre o individual e o social, é quase certo que a atividade ficará esvaziada e inútil naquilo que constitui seu objetivo.

Também, penso que não se pode enquadrar esta tarefa naquilo que a pedagogia denomina de uma atenção individual ao aluno, pois isto não confere a dimensão real do fenômeno que propomos. Métodos individualizados dão ao aluno uma atenção específica no desenvolvimento da tarefa pedagógica proposta, mas não são necessariamente singulares a ele, ou seja, não trabalham com significantes que lhe são próprios, a não ser, alguns significantes pertinentes a cultura a qual ele pertence. Mas, em se tratando desta população que focalizo aqui, falo de uma população que necessita algo a mais do que uma atenção individualizada.

Quando falamos em significantes do sujeito estamos buscando sentidos pessoais que, às vezes, podem ser até antagônicos ao sentido social comum, mas que se trabalhados podem inserir-se nele. O trabalho pedagógico também passa por estratégias usadas na escola convencional, mas isto só é possível quando incluímos um olhar sobre a subjetividade singular.

Portanto, projetos singulares tentam auxiliar o sujeito a “costurar” suas questões intrapsíquicas a partir de produções enunciativas em diferentes registros, onde o verbal não é condição única de inscrição do sujeito. Muitas vezes, trabalha-se longamente a partir de registros corporais, usando sons, movimentos e cores, fazendo-o transitar por diferentes atividades e oficinas. A proposta é a de favorecer a construção de algo que o insira produtivamente no social, a partir de algo que o represente subjetivamente, mesmo que o seu nível de representação psíquica ainda esteja aquém do registro verbal.

Portanto, ao elaborar-se um projeto singular, pensa-se em tipos e formas de encaminhamentos de atividades que, fundamentalmente, ajudem o aluno a sentir-se novamente incluído num grupo social produtivo e a investir em referências e pensamentos com função identificatória, isto com o objetivo de levá-lo a se pensar e se auto-investir. Planeja-se para este sujeito um ‘encontro’, na cena da realidade, de ao menos um outro Eu que lhe seja ponto de apoio e suporte de investimento3, tentando, aos poucos, que isto seja representado por mais de um Eu, no caso, a instituição como um todo. Dessa forma, também a instituição passa a ser portadora desse elemento identificatório, o que aumenta as possibilidades do sujeito vir a estabelecer relações nesse ambiente.

Entendo que o ato de escuta e recorte desses significantes e o ato de oferecê-los ao sujeito via objetos externos, reapresentando-lhes num corpo concreto ou conectado por informações da pedagogia, favorece ao sujeito olhar-se, melhor delinear-se. Há um trabalho permeado por um investimento libidinal no sentido dele apropriar-se desses significantes, o que sintetiza um trabalho de construção subjetivante, uma melhor organização do seu projeto identificatório.

Projeto singular de um adolescente(4)

Identificação e queixas

Marcos tinha 13 anos quando chegou à escola. Pai médico, sem destaques profissionais para decepção do avô paterno que sonhava em vê-lo um médico famoso. Mãe dona de casa e irmão menor que tem um bom desenvolvimento e com o qual é muito comparado.

Ainda não estava bem alfabetizado, tinha grandes dificuldades de organização temporal e espacial, pensamento rápido demais e que não acompanha o ritmo mais lento da escrita, fala e escrita confusa quando fica mais ansioso (omite, troca e inverte as letras), grande intolerância a frustração e tendência a perseverar em alguns conteúdos.

Traz na ‘bagagem’ passagens fracassadas por psicanalistas, fonoaudiólogas, neurologistas e psiquiatras, todos com diagnóstico inconcluso. No momento está sendo acompanhado por um serviço psicopedagógico, o qual aponta as seguintes características sobre seu funcionamento: negação das dificuldades, baixa auto-estima, dificuldade na análise das situações em geral, dificuldade para juntar dados de forma lógica. A expectativa dos pais em relação à escola é a de que o alfabetizem.

Construção do ‘ projeto singular’ de Marcos

Logo que chegou tinha grande dificuldade em escutar ordens e passou muitos meses dando ‘estouros’ e gritos e a equipe técnica precisou realizar trabalhos freqüentes com os pais e o serviço psicopedagógico que ele freqüenta. Na avaliação pedagógica feita por ocasião de sua chegada e desenvolvida melhor durante sua permanência, salientava-se uma conclusão: “Ele não agüenta a idéia de um processo!” Isto é traduzido pela técnica da seguinte forma: Marcos não aceita a idéia de uma construção de conhecimento. Ex: não sabe bem a adição e quer aprender a divisão; fala, sem entender, em raiz quadrada e coloca este conceito numa idealização, como se saber a raiz quadrada fosse algo como alcançar uma outra identidade, muito valorizada. Nas palavras da professora, ele colocava certos conceitos matemáticos num ‘nível mágico’.

Outro aspecto fundamental era sua dificuldade em acompanhar modificações ambientais: qualquer mudança na rotina tende a desorganizá-lo no pensamento e na conduta. Cognitivamente, apresentava pouca reversibilidade de pensamento, limitação que também dificulta as suas relações sociais. Na língua portuguesa, necessitava todo um trabalho de estruturação do tempo e do espaço, antes de serem introduzidas as estruturas morfológicas.

Em síntese, as bases do seu projeto singular a ser desenvolvido, deveriam levar em conta, segundo as técnicas:

1- Adequação entre a atividade de pensamento e a escrita, tentando mantê-las numa melhor sintonia;

2- Melhor construção de bases temporal-espaciais para a alfabetização prosseguir;

3- Manutenção de nível de angústia adequada à cena de aprendizagem (o que significa que quando ele viesse a ficar muito ansioso, seriam propostas atividades de tutoria, fora de sala de aula.)

O desafio da equipe era achar estratégias para o seguinte impasse: Marcos tinha dificuldades de entender níveis de conteúdos num nível de abstração simbólica, devido a uma certa concretude de pensamento; ao mesmo tempo, apresentava uma idealização de conceitos, ao que a professora denominou de ‘mágico’, pela forma como ele os encarava e aspirava dominá-los. Pelas suas limitações simbólicas deveriam ser desenvolvidas estratégias que privilegiassem metodologia concreta no desenvolvimento dos conteúdos, mas pelo seu funcionamento psíquico, ele ficava irritado, desqualificando este tipo de abordagem.

A questão que foi entendida como âncora do pensar as atividades a serem desenvolvidas com ele, foi à relacionada com sua dificuldade de manter-se acompanhando um processo, ver-se capaz de ‘chegar lá’, sua baixa auto-estima, como sintetizam as técnicas. A ansiedade, a desorganização do pensamento na hora da dificuldade cognitiva e a desqualificação da metodologia concreta, significavam esta impossibilidade de imaginar-se conseguindo aprender. Para isto, as estratégias, segundo a equipe, deveriam sempre estar dando a ele uma possibilidade de visibilidade de sua produção5 o que explicarei abaixo com um exemplo.

Quanto ao desenvolvimento da estratégia, inicialmente, para conter sua intolerância a frustração, muitas vezes a equipe precisou contornar certas regras, o que despertava comentários no ambiente no sentido dele ser protegido.

Foi feito um trabalho com os pais onde se tentou mostrar situações que o dificultavam. Um exemplo foi o seguinte: nas férias os pais foram com os filhos fazer uma viagem para a Europa, visitando vários países. Voltam muito decepcionados porque o menino deu muito trabalho devido a sua conduta ansiosa e sua desorganização e irritação. A coordenadora explica-lhes sua dificuldade de organização temporal-espacial e sua angústia frente às modificações de rotina, sugerindo-lhes que numa próxima viagem levassem em conta estes fatores. Os pais entenderam que haviam oferecido algo ao filho o qual ele não estava em condições de aproveitar e nas próximas férias organizaram uma viagem mais curta, mais perto de casa, com menos lugares de passagem e com planejamento em conjunto com os filhos, o que deu resultado totalmente diferente.

Na língua portuguesa, vai-se trabalhando noções de tempo e espaço e, ao mesmo tempo, deixa-se ele acompanhar colegas que estão num nível onde já se trabalha algumas estruturas morfológicas, tais como, substantivo, verbo e sujeito. A professora percebe que se consegue mantê-lo bem nesta interação com os colegas, ouvindo-os, mas sem ser cobrado o mesmo tipo de exercício. Na matemática o trabalho foi mais intenso, pois ele concentra nestes conceitos, segundo a professora, ‘uma idéia mágica’, o que ela parece querer dizer que ele desloca para a matemática uma idealização, um valor que representa uma projeção de aspectos seus. A dificuldade foi focar a adição quando ele já queria aprender a divisão. Além disso, não aceitava métodos concretos, como o uso de blocos mágicos; nas palavras da professora: ‘ele perde o mágico’ sic. O desafio da professora de matemática6 foi achar uma forma de apresentar os conteúdos de tal maneira que ele suportasse, tolerasse o início de um processo. Segundo ela, o dia que conseguiu um avanço, descrito como ‘entrei nele’ sic, foi quando, colocou no quadro exercícios demonstrativos da operação adição, que ele não dominava, de tal maneira que com os mesmos números e descrição deles, pode mostrar que a subtração e a divisão seriam entendidas a partir do que estava exposto no quadro. Marcos responde a esta estratégia com ar surpreso, dizendo: “É por isto que você diz que preciso saber tudo isto para depois saber o outro!” sic. Esta estratégia foi de encontro à proposta que pontuava a necessidade de que Marcos pudesse ter visibilidade de sua produção, ver o encadeamento dos conteúdos. Sem isto ele sentia-se desvalorizado, entendendo o início do processo como uma afronta, um submetimento desnecessário. A aprendizagem da raiz quadrada também seguiu a mesma estratégia, porém, segundo a professora, “sem parecer muito fácil”, pois senão ele acha que não é assim como ela disse. A professora relata que a reação de Marcos é de grande alegria quando aprende Raiz quadrada e conta que ele diz: “Agora vou aprender a raiz cúbica!”.

Paralelo a isto, frequentou laboratório com o professor de química. Foi usada esta estratégia pois se verificou que ele achava isto maravilhoso, segundo o professor, “ele se achava adulto com isto”. Foram feitas experiências simples, mas o efeito foi uma grande melhora na sua auto-estima, com diminuição de condutas agressivas.

No inglês, logo de saída trouxe um livro de casa, com conteúdos avançados. Queria aprender o que tinha ali. Criou-se um impasse que a professora solucionou da seguinte forma: no livro havia uma personagem central que talvez tenha sido o motivo de sua escolha: avó. A professora observou este seu interesse e recortou esta sua escolha, começando a conversar com ele sobre o tema ‘avó’, ao que ele reagiu com entusiasmo. Ele falou muito sobre a sua relação com uma de suas avós. Conseguido isto, a professora propõe que se comece a elaborar o seu livro sobre esta sua ‘avó’ e isto é feito com êxito e possibilidades de aprendizagem da língua, nível no qual se encontrava.

No segundo ano que estava na escola já havia feito progressos que o habilitavam a trocar de turma, o que se denomina, troca de nível. Mesmo tendo noção dos motivos da troca, que era seu crescimento, Marcos reagiu muito mal, “como se tivesse voltado para o zero”, conta a orientadora. Tudo precisou ser trabalhado e , aos poucos, ele absorveu as mudanças.

Após dois anos na escola, mostra-se com conduta bem melhor adaptada, suportando sala de aula e novos conteúdos já não tão sentidos como assustadores. O ‘projeto singular’ encontra-se agora precisando ser reorganizado, tendo em vista algumas conquistas importantes, conforme foi descrito. Pensa-se em encaminhá-lo para atividades ligadas a interesses que possam desenvolver aspectos profissionais futuros, mas isto ainda está sendo avaliado. Algo já iniciado foi um projeto na música, atividade da qual gosta muito. Marcos, no momento, escolheu trabalhar no tema “Músicas barulhentas” e a partir disso estão sendo encaminhadas várias atividades para ele, nas diferentes disciplinas. Como se pode constatar, neste momento já se pode usar estratégias ligadas à aplicação da teoria das Inteligências Múltiplas de Gardner.

Comentários

Salienta-se inicialmente que, nada seria possível em termos de intervenção se não houvesse uma importante implicação dos profissionais com a tarefa. A partir de um trabalho sistemático de busca de entendimento do psiquismo desta população, a equipe técnica consegue resgatar informações sobre o sujeito e seus modos de funcionamento psíquico e traduzi-los para os professores, que, por sua vez, necessitam operacionalizá-los na forma didática.

Assim, a equipe técnica entendeu o mote das dificuldades deste sujeito, as quais dificultam sua aprendizagem, no caso, “não aguenta o processo de aprender”, do que se subentende psicanaliticamente: “seu Eu não tem esperança de vir a ‘ser’. Feito a identificação do que é um fator importante e responsável pela dificuldade de pensar do aluno, a equipe técnica traduz isto para a metodologia didática a ser usada com o sujeito, no caso, sintetizada por meio da expressão “visibilidade de produção”.

É importante observar que, por mais de um ano, não ocorrem tentativas de confrontar o aluno com sua dificuldade básica na presença de uma outra pessoa, ou seja, fazê-lo admitir suas limitações, como fica explicitado na estratégia usada no inglês e no laboratório de química: a partir do significante que representa o seu ideal de Eu (livro de inglês avançado, participação no laboratório de química – uso do avental branco), procura-se levá-lo a um trabalho pertinente ao seu momento cognitivo e pedagógico, sem confrontá-lo com suas limitações. Enfatizo que, o importante é deixar na cena de aprendizagem os significantes que representam o que almeja alcançar, fazendo-os servir como testemunho de que conseguirá atingir a identidade com a qual sonha.

A professora de matemática consegue, por meio da utilização de um método que explicita o processo, que o aluno visibilize, ao mesmo tempo, o ponto inicial e o final do mesmo. Tal estratégia, mais a usada no Inglês e no Laboratório de Química, constituem uma cena que parece dar um certo grau de figurabilidade a sua angústia, o que a diminui. Consegue imaginar-se conseguindo chegar ao final da cadeia de conhecimento com êxito, consequentemente, pode usar melhor sua capacidade de pensar naquele momento.

Em síntese, neste ‘projeto singular’, tratava-se de organizar uma cena de aprendizagem onde o sujeito pudesse ter uma ‘visibilidade daquilo que queria alcançar, mas que não acreditava ser possível’. As diferentes situações psicopedagógicas organizadas para ele, conseguiram minimizar sua angústia e desesperança, ou seja, recuperar um pouco de sua auto-estima, possibilitando-lhe investir nos seus próprios ideais, no seu projeto identificatório.

Conclusão: efeitos e limites da estratégia ‘projeto singular’

Como psicanalista, posso dizer que se trata de uma estratégia via instituição escolar que contribui para minimizar os obstáculos do funcionamento do Eu do aluno implicado, possibilitando-lhes melhor uso das suas capacidades de pensar, consequentemente, melhor trânsito pelo pedagógico. Mas, é importante enfatizar que esta estratégia de intervenção não dispensa a abordagem intra-psíquica realizada por meio de um tratamento individual. Quando ocorre o trabalho paralelo e a equipe consegue fazer uma parceria com o profissional, quase sempre é maior o êxito do processo desenvolvido.

Independente de ocorrer ou não um trabalho terapêutico individual, penso como Aulagnier, que o registro do sociocultural, a partir da instituição escolar, contribui para que o sujeito possa distanciar-se dos enunciados parentais, evocando-os num outro espaço, o que lhe possibilita novas respostas e consequentemente, outras possibilidades de se pensar enquanto sujeito implicado com seu desejo.

Em termos de dinâmica de ação frente aos projetos, salienta-se a plasticidade estrutural necessária à instituição para que a equipe envolvida na tarefa se movimente em acordo com o nível de mudanças exigidas a cada momento. São inúmeras as dificuldades postas em.jogo frente a este tipo de objeto de trabalho, pois as interfaces profissionais se borram com facilidade. A única garantia de se permanecer focado na tarefa, parece ser a possibilidade da realização de trocas entre a equipe, fazendo as parcerias funcionarem. Desta forma, o lugar do psicanalista. além de ser o de pensar novas estratégias para que a montagem institucional atenda as necessidades psíquicas da população, é o de também possibilitar o trânsito de saberes e subjetividades, ajudando os profissionais na elaboração do ‘projeto singular’ e explicitando os conflitos advindos do interjogo de lugares criados na equipe ao realizar as tarefas.

Percebe-se com esta explicitação que a estratégia de inclusão do ‘aluno difícil’ requer uma determinada montagem institucional que, por sua vez, só funciona se os profissionais nela inseridos estejam mobilizados fortemente pelo desejo de responder as demandas identificatórias do aluno excluído, isto, desde a Direção até o porteiro ou um funcionário da limpeza. Todos poderão participar da execução de um ‘projeto singular’ e serão igualmente importantes para o trabalho.

BIBLIOGRAFIA

HORNSTEIN, Luís. Diálogo com Piera Aulagnier. In: Cuerpo, Historia y Interpretación-Piera Aulagnier-de lo originaria al proyecto identificatorio. Buenos Aires, Paidós, 1994.

AULAGNIER, Piera. (1975) A violência da interpretação: do pictograma ao Enunciado. Rio, Imago, 1979.

VIOLANTE, Maria Lúcia (2001) Piera Aulagnier – uma contribuição contemporânea à obra de Freud. São Paulo, Via Lettera.

GARDNER, Howard. Inteligências Múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre, Artes Médicas, 1995.


[1] Projeto Singular foi planejado e desenvolvido para os alunos do Colégio Graphein-SP, para o qual presto assessoria desde o ano de 1995. Trata-se de uma tentativa de aperfeiçoar e fundamentar metodologias que já eram desenvolvidas pela escola, cuja clientela é de portadores de desadaptações escolares.

[2] Também é fundamental, mas não possível de ser abordado neste artigo, a teorização de Aulagnier sobre os modos de representação do psiquismo, conceitos que uso para fundamentar atividades psicopedagógicas variadas, principalmente as ocorridas em oficinas e que fazem parte dos ‘projetos singulares’.

[3] Denominamos de “Tutorial” o processo de atividades que envolvem o Eu do aluno e um outro Eu que lhe possa servir, temporariamente, de suporte identificatório.

[4] As informações sobre o desenvolvimento deste ‘projeto singular’ foram-me fornecidas pela psicóloga Christiane Laurito e a psicopedagoga Elma E. Souza, pertencentes à equipe técnica do Colégio Graphein.

[5] ‘Visibilidade de produção’ foi uma forma como se conseguiu sintetizar o ‘projeto singular’, síntese feita pela psicopedagoga Elma E. de Souza

[6] Adriana B.P. Santos, professora de matemática, que operacionalizou estratégias metodológicas a partir da síntese que a orientadora lhe passou sobre as dificuldades do aluno , ou seja, de aceitar um processo no aprender, necessitando, portanto, de uma visibilidade de produção.

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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