Preparando nossas crianças e adolescentes para o século XXI – Contribuições na família , na escola e nos meios de comunicação

International Press
O jornal brasileiro no Japão – Caderno Opinião Janeiro, 1999

Quando falamos em preparar nossas crianças e adolescentes para o século XXI primeiramente precisamos pensar em todas as mudanças que estão ocorrendo nos modelos sociais vigentes e , em decorrência, as implicações para o indivíduo que terá que viver nele.

Nossa proposta de reflexão partirá de uma visão ampla dos efeitos no ser humano do fenômeno de aceleração e internacionalização do processo de comunicação, denominado “globalização” e que nesta virada de século está em ritmo vertiginoso. Após isto, tentaremos discutir alguns caminhos e alternativas as quais julgamos ser importantes para o preparo do novo ser humano que necessita enfrentar estas mudanças irreversíveis, ajudando-os a usufruí-las melhor.

Temos mais no imediato questões tais como:

1. O ser humano apreensivo, inseguro para acompanhar as mudanças impingidas e organizar este acúmulo de informações, das quais não pode fugir sob pena de desadaptar-se no meio em que vive.

Quando falamos neste ritmo cada vez mais acelerado não podemos deixar de lembrar um conceito da fisiologia de Claude Bernard : Ecossistemas apresentam capacidade de auto-recomposição desde que a agressão ao que podemos denominar de suas variáveis essenciais não ultrapasse determinados limites. Ultrapassagem esta que, ocorrendo , retira do sistema a aptidão de, espontaneamente, recompor-se, uma vez cessada a agressão.

Na natureza e no social observa-se que estas situações de “ultrapassagem” acabam, após período de intensa crise no referido ecossistema, levando-o a uma reorganização, um reagrupamento que forma uma nova identidade.

Sabemos da Psicologia e da Psiquiatria que toda nossa estruturação da personalidade está centrada na relação com os outros, somos constituídos através de relações, inicialmente com as figuras materna e paterna e depois os vínculos vão se alargando para o restante da família e o social mais abrangente. Neste início é importante certo grau de estabilidade e prazer nos estímulos, para que a criança possa organizar-se num eixo básico onde adquirirá valores centrais que direcionarão sua vida futura e garantirão sua estabilidade frente a mudanças. Falamos de padrões de identificação iniciais, cuja importância é a de sustentar uma forma de ser específica de cada ser humano, fundamental para sua existência.

Ao mesmo tempo, a personalidade de cada um é enriquecida, aos poucos, pela possibilidade de cada um ir vendo o mundo sob diferentes ângulos, característica que também torna-se fundamental para o desenvolvimento emocional e cognitivo.

Porém, aquilo que pode ser maravilhoso para o desenvolvimento, ou seja, a variedade de estímulos, quando em excesso ou ritmo muito acelerado, pode produzir fugacidade nas relações com os objetos, pessoas, informações, produzindo vivências de desorientação e desintegração e desprazer. Principalmente, nas crianças, esta fugacidade pode provocar uma fragilidade neste eixo básico organizador, o que compromete a consistência de um “eu”que a definirá.

Nossa geração adulta está neste momento da curva, isto é , no momento da crise, dos limites do suportável, dentro do surgimento de novas patologias que emergem do social não preparado para esta realidade : por ex a “doença do pânico”, representando a vivência da desintegração e desorientação, o encontro do homem com o trágico, uma sensação de enlouquecimento do corpo, um perigo de perda da organicidade.

Já com as crianças e adolescentes temos outros efeitos. A noção de autoridade que era centrada na família, estabelecendo uma base identificatória mais delimitada para a criança, agora é internacionalizada, sai dos limites dos pais e corre o risco de enfraquecer-se, ou então, organizar-se de outras formas, cujos efeitos ainda não se tem condições de serem avaliados. Neste contexto, os pais inseguros pela velocidade das mudanças, além de não conseguir mais ter graus de certeza para ter e afirmar uma gama básica de valores, reforçam a busca destes valores fora da família, principalmente nos meios de comunicação, agora internacionalizados e discrepantes nos modos de perceber o mundo.

A capacidade de lidar com o novo, de metabolizá-lo, sempre foi algo fundamental para o desenvolvimento eficaz do ser humano; porém, agora as novidades ocorrem num ritmo que tendem a roubar o espaço do “assombro”, do prazer, da reflexão e internalização. Surgem condutas de aparente “descaso” que assemelham-se a atitudes defensivas.

Ainda, sabemos, como afirmamos acima, que a noção de “eu” organiza-se num tempo de vivências possibilitadas pela existência de um fundo de memória. O passado perdido recupera-se e se transforma graças a esta memória e a capacidade do sujeito falar, o que recria constantemente este passado. Para que ser humano sinta-se autor de sua história é preciso este relembrar e recontar, num processo de construção e reconstrução permanente. Neste modelo o tempo de permanência do fenômeno é importante para sua internalização.

A velocidade dos mundos virtuais formam uma nova maneira de representação do tempo e consequentemente dessa organização de personalidade. A unidade de tempo é o nanosegundo – um milionéssimo de segundo, fora da escala humana, o instantâneo ultrapassou a cronologia, o antes confundiu-se com o depois.

Vemos, portanto, uma geração de adultos tendo que se esforçar muito para acompanhar as mudanças e sobreviver aos impactos. Estes mesmos adultos, um tanto inseguros para amparar a nova geração que, apesar de não revelar dificuldades desta natureza, fica muito solitária para interpretar e criticar todas as informações que lhes chegam.

2. Grandes modificações no campo de trabalho e novas formas de funcionamento exigidas, organizando um novo perfil profissional, tanto na formação dos conhecimentos técnicos como nas características de personalidade.

A principal e mais preocupante questão em relação a isto é o fato de que se está constituindo uma exigência no mercado de trabalho de um perfil profissional mutante, que se traduz na exigência de um ser humano muito integrado em termos de personalidade, seguro emocionalmente, exigência que é difícil ser satisfeita nas condições em que estamos vivendo. .

O que temos até esta década? Pais organizados em modelos de formação profissionais estáveis, quase sempre mantendo uma única atividade durante suas vidas. Agora devem preparar o filho para um modelo de formação capaz de transitar pelas mudanças rápidas dos mercados de trabalho, profissões que aparecem e desaparecem dentro de uma única geração. Os indivíduos terão que manter outro tipo de vínculo com a sua própria formação, pois o que o mercado pede hoje amanhã poderá ser obsoleto, na mesma velocidade que uma máquina é suplantada.

Não se fala mais em preparar o adolescente para esta ou aquela profissão, mas dar-lhe ferramentas gerais e básicas para poder movimentar-se nas mudanças que enfrentará durante a sua vida. O mercado exige outro perfil de profissional. Mais vale um candidato que saiba transitar por diferentes espaços do que aquele que ficou muito tempo no mesmo lugar. A palavra estabilidade será varrida de nossas rotinas.

Precisa-se de pessoas que sejam flexíveis na forma de encarar realidades e principalmente, que tenham metas, objetivos pessoais e não mais pessoas que faziam suas metas em função daquele momento ou da empresa ou lugar que ocupavam. A busca deverá estar centrada na formação pessoal e não na adequação aos objetivos desta ou daquela instituição, pois não se sabe de quanto será o tempo de passagem por ela.

Fala-se em condições de empregabilidade e não de emprego, o que pressupõe uma capacidade de organizar metas pessoais, autoavaliar-se constantemente e redefinir objetivos. Uma pessoa centrada em suas condições pessoais e atenta ao seu redor. A relação vitalícia deverá ser com o conteúdo do que se sabe e pode fazer e não com uma empresa ou país.

A formação terá que estar centrada no indivíduo e não no ambiente, mais na pessoa do que na profissão, mais nos desejos e possibilidades individuais do que na empresa.

Para definir melhor estas mudanças, podemos parafrasear Getulio Ponce Dias Dias na Conferência de abertura no 3º Encontro Mineiro de Terapeutas Ocupacionais, em 9/10/1998: As novas oportunidades de trabalho reduzem as oportunidades de mudança no trabalho, transferindo-a para a pessoa. As grandes mudanças que se requer agora precisam acontecer no indivíduo e não no trabalho. E completa: As famílias estão preparadas para desenvolverem filhos mais independentes e seguros, capazes de darem conta da instabilidade como uma manifestação de normalidade?

E é este nosso maior desafio! Ajudar nossas crianças e adolescentes a desenvolverem uma estrutura de personalidade capaz de enfrentar toda carga de mudanças, sem desorganizar-se, sem perder-se nos objetivos.

DESAFIOS PARA A ESCOLA:

Ao mesmo tempo que a escola precisa pensar numa aprendizagem que mantenha alguma forma de apropriação pela memória, ela enfrenta o descaso da criança pelas formas de estímulos perceptivas que não sejam o “instantâneo”do video clip. A apreensão do conhecimento já não se processa predominantemente no “linear” mas sim no “instantâneo”. Os livros tornam-se “chatos” e abandona-se o raciocínio cartesiano, o que por sua vez, enriquece os processos cognitivos.

Já temos uma nova geração bastante integrada perceptivamente em novas formas de apreensão do mundo onde o virtual suplantou o linear, mas bastante solitária nesta caminhada pela insegurança e/ou impossibilidade dos pais e educadores responderem ao novo ritmo.

Fica também o desafio para a escola: como possibilitar que o sujeito perceba o fenômeno, discrimine suas diferenças e o vivencie a ponto de rete-lo no seu fundo de memória, para “jogar”com ele prazeirosamente nas próximas aquisições. Ou melhor, como trabalhar com a apreensão “instantânea” sem empobrecer o fundo de memória que sustenta a organização do “eu” e do próprio processo de aprender ? Na nossa opinião, este é o principal desafio da pedagogia para nossa época!

Também, como trabalhar com esta apreensão instantânea sem tornar o meio a mensagem, sem usar dispositivos de efeitos especiais incompatíveis com a capacidade de apreensão do ser humano normal , como no caso do desenho japonês que provocou sintomas epiléticos?

Falo em “desafio” para a pedagogia porque os educadores responsáveis pelas novas gerações estão na sua maioria “em crise” frente aos novos modelos, no caso, tiveram seus processos de aprendizagem dentro de outros parâmetros, por ex, na apreensão “linear”e não “instantânea”. Fica difícil para a geração de adultos atual criar novas formas de intervenção pedagógica que pelo menos acompanhem os processos do momento, pois nós mesmos temos resistências para adaptar-nos ao existente. Isto sem pensar que, enquanto educadores, precisaríamos também estar “na frente”, pensando estratégias estimuladoras para os processos de aprendizagem compatíveis com os da geração que vem aí.

DESAFIOS PARA A FAMÍLIA:

Este tipo de ser humano flexível e, ao mesmo tempo, muito centrado nos seus objetivos, só pode advir de uma experiência excitosa das funções materna e paterna: bases vinculares com bom nível de estabilidade no início de sua vida, relações prazerosas e constantes.

Por isto o grande desafio dos pais é manter o fortalecimento de suas funções garantindo os cuidados necessários aos primeiros anos de vida. Manter nesta nova situação, uma coluna dorsal de representações familiares que possibilitem à criança desenvolver uma estrutura onde o “eu” esteja firme, onde a diversidade e a transitoriedade não acarrete um sujeito “alienado” de si mesmo. Mesmo que ela esteja diariamente bombardeada por diferentes valores e estímulos, possa sentir-se ligada a algum padrão de referência que funcione como um organizador para que se possa diferenciar e constituir-se na individualidade que caracteriza o ser humano.

Também, cada vez mais o ser humano precisa saber lidar com relações grupais e transitar por uma interdependência, sem confundir-se. Saber trabalhar em grupo, exigência vital no mercado de trabalho que se instala, apreende-se nas relações familiares e depois, é transposto para o social, iniciando com vivências escolares. É preciso que a fugacidade das informações e relações não impeça que vínculos consistentes sejam criados entre a criança e as pessoas que a rodeiam.

Neste sentido, é necessário que os pais mantenham padrões de conduta com um nível de coerência capaz de produzir na criança um sentimento de proteção, sentimento que advém de um nível mínimo de repetição de atitudes e valores.
Esta tarefa tem sido muito difícil, principalmente porque nossa geração, criada com outros padrões perceptivos acaba deixando os filhos solitários quando estes buscam estímulos diferentes dos habituais a geração passada. As escolas queixam-se do abandono dos pais, da pouca participação. Penso que a maioria destes pais acha que a escola sabe melhor o que fazer com estas novas formas de funcionar e, portanto, delega à ela esta tarefa, mais por insegurança do que por falta de amor. Mas os pais não se dão conta que os professores são da mesma geração que a deles e estão talvez, tão inseguros quanto eles.

Trata-se de um momento onde a presença ativa dos adultos, tanto família, escola, bem como os meios de comunicação, faz-se essencial: mostrar uma base de valores, acompanhar as crianças e adolescente frente a variedade de estímulos ajudando-o a criticar e diferenciar, a posicionar-se. Todos precisamos trabalhar mais com o aprofundamento dos fatos em vez da variação dos mesmos; isto é importante principalmente para os meios de comunicação que mostram os acontecimentos em tempo real. Esta alternativa pode reduzir o negativo da aceleração e da quantidade de informação, contribuindo para que as crianças e adolescentes absorvam com maior aproveitamento, formando pessoas capazes de contribuir socialmente.
É fundamental desenvolver neles o espírito crítico, uma dialética mais apropriada para quem recebe o impacto da informação em tempo real.

Finalmente, salientamos que as vivências multiculturais as quais elas estão hoje expostas, tanto por vídeos como por situações reais, podem constituírem-se como excelentes alavancas para a para a preparação necessária deste “novo ser humano”, com a condição de que sejam acompanhados cuidadosamente na elaboração das bases de sua personalidade.

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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