O adolescente e a recusa do não saber

O artigo discute certas formas discursivas apresentadas por adolescentes frente às dificuldades que atravessam no percurso escolar, focando as diferentes reações de recusa do não saber, explicitadas em transferência. Revisa-se o conceito de recusa da castração na obra de Freud, exemplificando os movimentos pertinentes a dois momentos estruturais: um onde predominam no sujeito os recursos de recalcamento e outro, onde há um fracasso destes mecanismos neuróticos, predominando momentos de clivagem do ego.

Palavras-chave: Adolescente – Mecanismos de Recusa (da castração)- Dificuldades de Aprendizagem- Narcisismo- Clivagem (do ego).

This article discuss about the ways that teenagers act in front of problems and dificults during the school trajectory, focusing diferent reactions in the disavowal of the know and unknow, showed in the transference. Review the disavowal concept in Freud’s work, exemplifing two structurals moments: one has predominance in the subject resource of the neurotics mechanisms and another one where the predominance is the splitting.

Key words: Teenagers, disavowal, learning desabilities, narcisisme, splitting.

Ao relacionarmos dados da clínica psicanalítica com adolescentes e investigações sobre a constituição do sujeito epistemofílico, foi possível, em situação de transferência, observar a presença de diferentes organizações discursivas quando esses sujeitos devem defrontar-se com o não-saber. Para além de tais diferenças, nesses momentos verifica-se uma reatualização no uso dos mecanismos de recusa da castração, mecanismos que se explicitam e se organizam de acordo com os recursos estruturais de cada sujeito.

Antes de focalizar de forma mais direta tal questão, penso ser importante mapear rapidamente o campo das patologias referentes às dificuldades de aprendizagem, situadas a partir do referencial psicanalítico.

O campo das dificuldades de aprendizagem

De modo geral, as dificuldades de aprendizagem podem ser classificadas de acordo com o seguinte esquema:

1) Em primeiro lugar, observam-se dificuldades relacionadas com a estruturação psicótica, onde a indiferenciação entre o eu e o outro dificulta e/ou impede o acesso ao registro pedagógico, já que este solicita uma lógica organizada diferentemente da lógica do inconsciente.

2) Um segundo tipo de dificuldades de aprendizagem é ocasionado por lacunas na estruturação psíquica precoce, que podem se traduzir em termos de disfuncionalidade corporal. Nestas situações, o sujeito não chega a organizar sintomas enquanto produção neurótica, mas apresenta o chamado Transtorno¹ , com manifestações na forma de hiperatividade, desorganização da imagem corporal, desatenção, patologias na tonicidade. Em suma, temos aqui um corpo que não consegue integrar-se de maneira a poder servir de instrumento para o sujeito inscrever-se numa folha de papel.. Estes impedimentos ocasionam uma interceptação do processo de alfabetização, pois incidem sobre a imagem corporal e dificultam a organização das funções ligadas ao processo de aprender; tal problemática também repercute na organização de uma posição de sujeito capaz de lidar com o saber externo, dado que ele não dispõe de recursos estruturais suficientes para perguntar-se sobre si mesmo, a partir de um delineamento de sua posição fantasmática.

3) Em terceiro lugar, encontramos as patologias ligadas às dificuldades neuróticas, onde as formações de compromisso organizam sintomas que podem causar quadros fóbicos, obsessivos e mesmo histéricos em relação ao conhecer. Embora todos estes mecanismos ocasionem dificuldades, o sujeito não deixa de apresentar possibilidades de transitar pela vida escolar, mesmo com certos momentos de instabilidade.

Na adolescência, verifica-se a ocorrência de entraves específicos no processo de aprendizagem, que modulam de forma diferenciada os quadros acima focalizados Essa diferenciação conduz a uma questão central, que consideramos estar relacionada com uma reatualização dos mecanismos de recusa da castração.

O confronto com o não saber e a recusa da castração

Quando e como fomos buscar este conceito e por que ele foi útil em nossa reflexão?
Sabemos que, no final da puberdade e adolescência, tende a ocorrer uma intensificação de reações de recusa no contato com o conhecimento novo, o que pode tornar a escolaridade extremamente difícil e, às vezes, impossível. Lembremos ainda, que nesse momento do percurso escolar, os programas começam a ser trabalhados de modo a aprofundar conteúdos específicos, evidenciando-se então os limites impostos pelas aptidões individuais.

É importante salientar a peculiaridade dessa época com respeito àquela situada no inicio da escolaridade, em que se encontra em jogo a alfabetização.. As dificuldades que se apresentam, principalmente no início do segundo grau, irão encontrar um sujeito mais vulnerável narcísicamente, dadas as cobranças fálicas que o meio intensifica nesta fase; assim, apesar de ter tido até esse momento um desempenho escolar razoável ou que chegou por vezes a ser brilhante, o adolescente vê-se agora obrigado a confrontar-se com um limite que desconhecia em si mesmo.

Ao percebê-lo, inicia todo um processo de destituição da importância do conhecimento, que é principalmente representado pela instituição escolar e pela figura do professor, que tenta apresentar-lhe esta realidade. Reage através de um discurso ativo e com atitudes bem diferenciadas, que iremos ilustrar a seguir através da apresentação de material clínico.

Acredito que os conteúdos novos que é convocado a perceber ameaçam o adolescente pela possibilidade de não serem dominados, tornando-se portanto potencialmente capazes de atacá-lo em seu narcísismo .
Uma forma de se compreender a ameaça experimentada pelo adolescente frente ao conhecimento novo é considerá-lo como o “terceiro da cena”, vindo portanto a desempenhar a função paterna, que irá operar um corte, constituindo-se em fator de ruptura da posição onipotente narcísica mantida com a realidade. É nesse sentido que a escola e o professor podem representar um perigo para o adolescente e reatualizar os primitivos mecanismos de recusa.

O conceito de recusa de castração na obra de Freud

Retomemos os momentos da obra de Freud onde é conceituada a rejeição da realidade percebida.

Nos Três Ensaios sobre a Sexualidade (1905), Freud já vislumbra esta problemática, quando situa a negação do menino em reconhecer a ausência de pênis na menina, caracterizando assim a primeira das teorias sexuais infantis, ou seja, a hipótese de que haveria um único aparelho genital em todas as pessoas.
Irá designar esse mecanismo com a palavra “preconceito”, aspecto metapsicológico importante na sua obra, mecanismo que leva o menino a não aceitar sua percepção da falta do pênis na menina, afirmando ao contrário que o mesmo vai crescer. Trata se aqui de uma questão narcísica imperiosamente colocada ao menino, ou seja: como pensar que a mãe, que lhe parece tão prodigiosa, não possui esse membro, sumamente valorizado?

No texto de 1916, Conferências introdutórias à Psicanálise, Freud irá começar a designar como verleugnen o ato psíquico que consiste em tratar uma percepção como impensável.

Em 1923, no texto A organização genital infantil descreve este mecanismo de recusa da castração enquanto a impossibilidade do menino de reconhecer a ausência, na mãe, de algo que tanto valoriza. Segundo Freud, “os meninos lançam um véu sobre a contradição entre a observação e o preconceito, indo buscar o argumento ‘ele ainda é pequeno’ e ‘crescerá logo’, e chegam lentamente a esta conclusão, de um grande alcance afetivo: antes, em todo caso, ele estava ali, e depois foi retirado. A falta do pênis é concebida como o resultado de uma castração, ficando a criança, então, no dever de enfrentar a relação da castração com sua própria pessoa”.

Trata-se de um momento primordial na organização psíquica, pois aquilo que Freud denomina de castração passará a representar a operação que o sujeito terá que simbolizar a respeito da diferença entre os sexos, o registro da ausência do pênis na mulher constituindo-se numa questão narcísica. Freud denomina a relação particular que o menino manterá com tal problemática de “segundo momento de castração”, onde a aceitação desta diferença implicará na experiência de ameaças com respeito ao próprio pênis.

Também enfatiza o intenso caráter emocional implicado nesta elaboração, lembrando que ela só se torna possível após um longo período de recusa. Tal fato é ressaltado no texto de 1925, Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos: “Não é senão mais tarde quando a ameaça de castração adquiriu influência sobre ele, que esta observação adquire para ele a plena significação: quando ele rememora, ou a repete, é preso de uma terrível tempestade emocional, passando a acreditar na realidade de uma ameaça, da qual até então ria.”

Isto ocorre porque duas questões chaves da estruturação psíquica são aqui necessariamente mobilizadas, ou seja, narcisismo e presença e ausência da figura materna; esta última elaboração irá influenciar a resolução da questão sobre a diferença sexual.

Nas meninas ocorre algo diferente: no início ela julga e decide; vê a diferença, sabe que não possui o pênis e quer tê-lo. Portanto, inicialmente ela se comporta de forma diferente do menino e pode vir a manter a esperança de ser semelhante aos homens até uma época tardia.

A recusa, enquanto mecanismo, não é considerada patológica na vida psíquica da criança, mas somente se persistir na vida adulta. Neste mesmo texto, Freud irá contextualizar o conceito, incluindo-o numa discussão mais ampla de caráter psicopatológico, articulando-o com a perversão e a psicose.

Recusar implica numa operação que abole o sentido, enquanto recalcar possibilita uma repressão cujo sentido pode retornar, como verificamos na produção dos sintomas através do deslocamento e da condensação. Na operação de recalque, diz Freud, as coisas se passam como ela não existisse. Em 1918, já havia descrito o mecanismo de clivagem intrapsíquica, referindo-se a duas correntes psíquicas contrárias: uma que abomina a castração e outra que tenta aceitá-la. Este não lugar da castração, no plano simbólico, produz um retorno alucinatório de vivências, e mesmo uma suspensão da temporalidade, ambas experiências que se encontram na base da psicose.

É no texto de 1925 que ele estabelecerá uma relação entre a recusa e aquilo que mais tarde Lacan chama de forclusão, conforme descrição de Penot (1992). Freud afirma a existência de dois momentos na constituição da psicose: esta se inicia com a recusa da realidade, instalando-se a seguir a construção delirante. Na neurose, este segundo momento produz o sintoma, através do qual tenta-se manter um acordo entre o princípio do prazer e a realidade externa; tanto na neurose como na psicose há alteração da relação com o mundo exterior, mas de natureza diferente: na primeira predomina uma evitação, enquanto na segunda ocorre a construção de uma neo-realidade, em que os mecanismos de recusa provocam uma restituição alucinatória. O elemento da realidade recusado irá se apresentar no pólo perceptivo, justamente ali onde a recusa foi exercida.

Penot (1992) afirma que, a partir de 1927, poder-se-ia verificar nos textos freudianos uma relativização da idéia de recusa como primeiro momento da psicose, acompanhada da proposição da clivagem do ego como tópico principal neste mecanismo. Tal clivagem ocorreria a partir da existência de duas disposições mentais opostas e incompatíveis em relação a uma certa significação. Assim, a recusa não está mais centrada na recusa de alguma coisa, mas à seguinte forma de relação de rejeição entre duas partes clivadas do ego: uma parte do ego aceita funcionar sob a lógica da diferença que se traduz como incompletude e da presença-ausência do phallus enquanto a outra parte, de natureza narcísica, só aceita a lógica unitária. É justamente este jogo dialético que estabelece uma lei do tudo ou nada, que impossibilita a síntese da realidade percebida.
Trata-se então, de um mecanismo de clivagem do ego e não de defesa, pois ele não o ajuda a fazer seu trabalho de síntese.

No texto sobre o Fetichismo (1927), Freud irá mais uma vez ressaltar a diferença entre clivagem e mecanismo de recalcamento. No fetichista a percepção permanece, uma grande energia é empregada em sua manutenção, e um verdadeiro pânico narcísico é despertado caso ela seja posta em perigo. No recalque, ao contrário, a representação é apagada e o afeto é deslocado. Portanto, enquanto o recalcamento age sobre o afeto, a recusa age sobre a representação, tentando reduzi-la na sua significação, o que é realizado através da eleição de um objeto fetiche, que de certa forma obtura a falta e propicia um caminho intermediário entre a abolição e a aceitação desta realidade.

Os casos clínicos: dois momentos estruturais

Como já assinalamos, nos adolescentes é comum o uso do mecanismo de recusa em função das exigências fálicas que lhes são impostas, interna e externamente, neste período. Variações de intensidade e qualidade de seu uso podem ser percebidas de acordo com os movimentos psíquicos estruturais e com os fatores sociais atuais. Muitas vezes, chegam a ocorrer movimentos emocionais tão intensos que podemos nos sentir tentados a qualificar sua experiência como perversa ou psicótica. Clinicamente, porém, conhecemos a intensa mobilização psíquica à qual estão submetidos nessa etapa, o que nos obriga a escutá-los sem precipitações diagnósticas, sabendo-os capazes de importantes movimentos de reorganização.
No que diz respeito a seu confronto com o não saber é possível constatar o impacto desta questão enquanto reatualizadora da percepção traumática da incompletude da mãe antes vista como fálica.

Duas situações de adolescentes com movimentos estruturais diferentes, usando mecanismos de recusa, podem ilustrar a questão. Ambos têm em comum um primeiro momento de recusa, onde ocorre um certo pânico narcísico exatamente frente às dificuldades do não saber; ambos também usam, através de uma lógica discursiva, argumentos que tentam destituir a importância do objeto faltante, e procuram insistentemente deslocar o foco da questão da falta, atribuindo-a a um outro que não ameace sua posição narcísica, regida pela lógica unitária.

a) O primeiro deles apresenta dificuldades na área das disciplinas de exatas (física-química e matemática), o que o tem colocado sempre em risco de reprovação escolar. Apesar de dispor de recursos estruturais que possibilitam o uso do recalcamento, tende a defender-se através de um padrão de recusa. Fala do seu baixo rendimento de tal forma que a questão tende a deslocar-se para a ineficiência dos métodos pedagógicos dos professores, demonstrando desprezo e desinteresse pelos conteúdos e, às vezes, também pela pessoa do professor. Na sessão desqualifica estes conhecimentos : “para que serve saber as fórmulas de química, é ínútil aprender isto!” ou ainda “o professor de matemática não é capaz de demonstrar as fórmulas que ensina, como posso respeitá-lo e aprender?”

Note-se, aqui, um ponto fundamental: suas argumentações são bastante convincentes, pela sua lógica e adequação aos fatos reais. Devido à posição transferencial, será portanto exigido que o analista dê mostras de uma grande perspicácia e sutileza quanto ao bom momento para pontuar a falta recusada, ou seja, a recusa da representação da mesma através do deslocamento de seu foco. O sujeito não se questiona sobre a sua dificuldade, mas esconde-se sob mecanismos onde sua inteligência poderá ser utilizada para livrá-lo do confronto. Pois qual adulto não reconhece hoje as dificuldades das organizações pedagógicas nas escolas, e não chega até a questionar se valeria mesmo a pena tudo o que lá se aprende? Ou ainda, quem não tem dúvidas sobre a utilidade de se aprender tudo aquilo que a escola propõe? Então, quando o sujeito argumenta “para que eu vou querer saber isto? “, podemos nos sentir fixados a um lugar transferencial de imobilismo, experimentando na própria pele a angústia do confronto recusado.

Porém, este tipo de sujeito costuma vir às sessões e produzir (apesar de manter-se focado em desqualificar aquilo para o qual recusa-se a olhar), o que propicia a manutenção do espaço de trabalho; viabiliza-se assim uma situação de transferência onde é possível marcar a falta no seu discurso. Além disso, suas falhas narcísicas não o colocam numa posição de tanta vulnerabilidade, já que domina algum tipo de conteúdo e funciona bem em outras áreas, como por exemplo música e computação: apresenta nessas disciplinas um excelente desempenho, em ambas exige-se aprender sozinho e fica horas exercitando-se com relativo sucesso.
Ao ser pontuado na sua exigência e questionado sobre sua reação quando, apesar da explicação dada pelos professores, não consegue entender algum conteúdo, começa a hesitar nos mecanismos de desqualificação daquilo que não sabe. Num momento posterior, conta numa sessão que dormiu numa aula de matemática e segue, visivelmente abatido, com a associação “mas eu preciso terminar o segundo grau!”. Vemos assim que, após uma recusa, onde há a destituição do saber enquanto lei para defender-se do “não sei tudo”, pode, aos poucos, confrontar-se com ela e deprimir-se. Logo continua associando, num pensamento que cria saídas para o aniquilamento narcísico anterior: “ talvez eu consiga estudar mais!”, “acho que um pouco é dificuldade e outro pouco pode ser que eu fico não prestando atenção”. A partir deste momento, começa a produzir associações que desvelam o conflito com a lei: lembra que nunca gostou de imposições, principalmente do pai, e que agora a matemática quer também fazer-lhe imposições, com “as regras idiotas!”. Portanto, o sujeito consegue sair da lógica unitária e seu ego restabelece uma visão mais integrada da realidade antes recusada. A possibilidade de dormir na aula revela uma evitação defensiva que não abole a representação, mas representa apenas uma tentativa de negociação temporária entre o prazer da recusa e a realidade.

Podemos ainda observar que os argumentos lógicos que sustentaram a recusa não são rejeitáveis, mas o sujeito consegue discriminá-los daquilo que é a sua própria recusa de não saber. Isto possibilita que ele mantenha sua capacidade crítica e não caracterize a aceitação da lei como submissão, o que o libera para continuar sendo um sujeito criativo.

b) No segundo caso, temos um adolescente com insuficiência de mecanismos neuróticos² , onde a recusa assume proporções mais intensas. Ao ser confrontado na puberdade com o fato de ter que estudar, passa a utilizar-se da recusa, fortalecendo ainda mais seu uso na adolescência. Diferentemente do exemplo anterior, neste sujeito a recusa abarca não somente alguns conteúdos, mas a escola em geral. Mostra-se não apenas onipotente e despreza os professores, mas ataca-os com indisciplina e agressões verbais, o que o impede de manter-se numa mesma escola por muito tempo. É capaz de focalizar brilhantemente as dificuldades individuais de cada um dos professores, recortá-las e explicitá-las publicamente, desqualificando-os. Ao ser confrontado com a questão “e o que vais fazer se não fizeres o percurso escolar? “ responde que “posso até ser médico sem fazer medicina”, usando como argumento uma notícia de jornal que mostra a prisão de uma pessoa que conseguiu clinicar anos numa instituição respeitável, sem nunca ter possuído o diploma de médico.

Aqui, encontramos uma situação onde o sujeito recusa-se de forma bem específica ao contato com o não saber, o que diferencia seu percurso daqueles movimentos do sujeito citado anteriormente e também das reações ditas “normais” na adolescência.

Trata-se de um discurso de recusa onde a possibilidade de falência da unicidade narcísica leva o sujeito a um tipo de argumentação quase delirante: “posso até ser médico sem fazer medicina”. Ressalte-se ainda que, diferentemente do primeiro caso, não encontramos qualquer resquício de uso da argumentação enquanto evitação, pois isto implicaria a presença de uma certa dose de humor, numa auto-crítica dos próprios argumentos apresentados.

Frente à impossibilidade de reconhecer o saber enquanto lei, a destituição do saber é maciça. Os mecanismos psíquicos empregados tentam sempre deslocar a questão da lei – “precisa-se saber ” ou “devemos aprender ”- para discussões onde esta é posta em dúvida por algum fato social, ou mesmo por alguma falha específica de sua lógica.

c) A comparação entre os dois casos

A diferença entre os dois sujeitos é que, apesar de terem ambos um primeiro momento de recusa que é prolongada, num segundo momento dispõem de recursos diferentes: o sujeito com melhor capacidade de recalcar desloca-se para um certo movimento depressivo, integrado, da percepção recusada, achando formas para enfrentar a ferida narcísica da incompletude do não saber; por outro lado, o sujeito com insuficiência de mecanismos neuróticos explicita uma clivagem egoica que num dos pólos perceptivos cria uma argumentação quase delirante.

Situando a questão em termos de diferenças estruturais, notemos que um adolescente com maiores possibilidades de recalcamento até usaria o mesmo argumento, mas não com uma veemência tão onipotente ou revelando tanta incapacidade de deixar-se tocar pela incoerência proferida. Usaria o argumento, mas cederia à contra-argumentação, provavelmente com bom humor, caracterizando-a como “gozação”, denotando reconhecimento da falta que a questão lhe impõe.

Observa-se, no segundo caso, um apego intenso às argumentações que destituem a realidade negada. Em sua argumentação, ocorre um verdadeiro transbordamento do uso da desqualificação da lei, e o intenso apego observado no próprio ato de argumentar soa-nos às vezes como algo da ordem do discurso paranóico, onde o ato de pensar parece, às vezes, adquirir o estatuto de coisa , na categoria de certezas.
Já um mecanismo de recusa utilizado no contexto de uma estrutura perversa definida levaria o sujeito a agir sem explicitar a sua destituição da lei, provavelmente como o médico sobre quem a notícia do jornal se referia.
O mecanismo de recusa, conforme estamos explicitando, move-se num discurso aparentemente organizado e usa uma argumentação que destitui aquela utilizada pela realidade que o sujeito precisa enfrentar num dado momento. O outro, sujeito representante da lei recusada, geralmente alguém da instituição escolar, fica desprovido do saber sobre a lei que representa; ocorre uma desqualificação desta lei que desarticula a lógica em pauta.

Possibilidades e dificuldades na intervenção terapêutica

Clinicamente, quando em presença de movimentos estruturais semelhantes aos do segundo caso comentado, em muitos momentos torna-se necessário alargar os limites do setting terapêutico, oferecendo uma escuta que abranja familiares e quase sempre uma interlocução com a escola. Isto porque estes sujeitos criam situações onde seu discurso, destituidor do valor dos representantes da realidade recusada, cria desavenças e desestabiliza o ambiente, o que lhe garante a permanência em seu trono narcísico de completude, livre da angústia do “não saber”. Seu arrazoado inteligente, mas desqualificador, introduz insegurança entre as partes implicadas, ao questionar sua eficiência. Isto pode ser tão intenso a ponto de ocasionar conflitos não administráveis, levando ao abandono de tratamento e/ou da escola; quando precisamos intervir é freqüente verificarmos que as pessoas implicadas estão discutindo tudo, até o “sexo dos anjos”, menos a questão que o sujeito recusa, que é a de admitir que não sabe e precisa reconhecer seus limites.

Assim, consideramos importante nesses momentos que nossa intervenção possa ajudar as pessoas envolvidas a devolverem a angústia para o sujeito, auxiliando-o assim a discriminar saídas para caminhar entre o tudo e o nada.

A importância desta intervenção familiar fica ainda mais evidente quando lembramos que adolescentes com esse tipo de dificuldade tendem a faltar nas sessões e também a desqualificar o tratamento.

No caso de sujeitos com esse tipo de estruturação psíquica, o trânsito pelo não saber e o contato com o desconhecido mostra-se impossível sem a interpelação de um nível de angústia para eles insuportável. Uma forma de neutralizar os efeitos intensos da recusa é ajudar estas instâncias externas a não caracterizarem esse “desconhecido” como algo que exija excessivamente o adolescente, e a não lhe atribuir uma relevância exorbitante. Em outros termos, é necessário que o saber seja colocado num nível de menor importância para que não acarrete a catástrofe narcísica.

Na prática, isto quer dizer que o adolescente com tais estas fragilidades precisa não se sentir muito pressionado em termos de exigências fálicas, como passar num vestibular muito difícil, decidir logo o que quer fazer, etc…

Esta fragilidade, por sua vez, tampouco torna-os capazes de definir um projeto para suas vidas, no caso, uma definição profissional e um percurso para atingi-la, já que oscilam entre o tudo e o nada. Não dispondo de um registro fantasmático marcado pela falta, mostram grandes dificuldades para elaborar um projeto de vida e construir um percurso que dê conta dele.

Se não ocorrer mudança neste nível de recusa, observa-se uma evolução na qual o projeto de vida é pensado e realizado de forma tão onipotente que se torna inviável na prática, ou então, em que é cumprido fora da lei enunciada pelo ambiente social, configurando-se assim uma estruturação perversa definitiva.

Em muitos casos, observam-se famílias sustentando tal onipotência, o que se mostra através de situações popularmente chamadas de “paitrocínio”, onde os pais fazem arranjos financeiros para manter o sujeito com a ilusão de que se pode conseguir o que quer sem implicar-se com a falta. Neste tipo de saída, os sujeitos “brincam” de estar produzindo algo e deslocam-se de um projeto para outro, sempre amparados por arrazoados que destituem de valor aquilo no qual fracassaram.

Nos sujeitos adolescentes com insuficiente mecanismos neuróticos, as argumentações são, às vezes, desprovidas do brilhantismo lógico do adolescente neurótico, tendendo a serem escutadas pelo interlocutor como absurdos, sendo por isto mais difíceis de serem pontuadas em transferência, pois revelam uma impossibilidade de se ouvir o outro.
Esta impossibilidade, que se operacionaliza também pela desqualificação do outro interlocutor, dificulta a manutenção de um espaço para o tratamento, levando à constituição de processos interrompidos e falhos. Neste sentido, nosso fracasso como analista é marcado pela concretude das faltas nas sessões ou pela interrupção definitiva do tratamento.

Em ambos os casos, é imprescindível o ter presente o pânico narcísico que estes sujeitos estão vivenciando e que nosso trabalho, quer em transferência analítica, quer numa intervenção familiar e/ou na escola, deve constituir-se como um espaço de apaziguamento deste medo de olhar para a finitude do sujeito.

(1) Sílvia Bleichmar define Transtorno enquanto falhas dos mecanismos básicos do psiquismo, falhas estas que podem se traduzir em desorganização das aquisições iniciais das categorias de tempo, espaço,da lógica e do juízo. (1986, 35)

(2) Quando usamos esta expressão pensamos na designação de uma estrutura limite, entre a neurose e a psicose, aberta a resignificações e movimentos, sem atribuir à neurose uma posição hierárquica privilegiada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLEICHMAR, Sílvia. Las orígenes del sujeto psíquico. Buenos Aires, Paidós, 1986.

FREUD, Sigmund.(1905) “Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1980, vol.7.

______________ (1916) “Conferências introdutórias sobre Psicanálise” (Conferência 21: O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais). Op. cit. vol. 16.

_______________(1918) “História de uma neurose infantil”. Op. cit., vol. 17.

______________ (1923) “ A Organização Genital Infantil”. Op. cit., vol. 19.

_______________(1927) “O fetichismo”. Op. cit., vol. 21.

______________(1925) “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”. Op cit, vol. 19.
______________(1938) “A divisão do Ego no processo de defesa”. Op. cit., vol. 23.

FERRAZ, Flávio Carvalho.(2000) “Uma breve revisão da noção de perversão na obra de Freud”. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, n. 131, 5-19.

NAVES, Emilce Terezinha. (1999) “O papel da recusa nas relações entre o narcisismo e a Perversão.” Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol.II, n. 2, 108-120.

PENOT, Bernard. Figuras de Recusa- Aquém do negativo. Porto Alegre, Artes Médicas, 1992.

SIGAL, Ana Maria & ARANTES, Maria A.C.(1997). “ A organização genital infantil” (1923) – “Conseqüências psíquicas da diferença sexual anatômica”(1925), in ALONSO, Sílvia Leonor& LEAL, Ana M. S., Freud: Um ciclo de leituras. Escuta, São Paulo, 1997, pp.53-92.

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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