Mestrado em Psicologia Clínica

O Transtorno na constituição psíquica – seus efeitos no corpo e na alfabetização

As questões elaboradas e desenvolvidas neste trabalho foram mobilizadas pela clínica com crianças, especificamente por aquele tipo de queixa referente a certos quadros de dificuldade de aprendizagem cuja etiologia não se enquadrava em situações de prejuízo neurológico, nem na estruturação psicótica e neurótica.

Não podendo enquadrar estas dificuldades nestas etiologias, como compreender aquelas situações onde a criança mostrava-se impossibilitada de organizar seu corpo de maneira que ele servisse como representação das funções ligadas ao aprender? Do que ela estaria falando ou impossibilitada de falar, através deste corpo desorganizado? Como escutar aquela perturbação não neurológica de tônus muscular que impedia que o corpo se organizasse? Como escutar o transtorno de tempo e espaço, também não neurologicamente determinado, que impedia a criança de organizar seu pensamento para a alfabetização? Como escutar aquela predominância de concretude nos processos simbólicos, quando a criança não apresentava deficiência cognitiva significativa?

No momento em que coloquei-me estas questões contava com uma leitura freudiana que só conseguia esclarecer questões relativas a produção neurótica dos sintomas; a obra kleiniana parecia-me ter limitações quanto à problemática do sujeito e seu corpo; a teoria do significante em Lacan e a sua retomada de Freud , ajudaram-me a levantar questões em relação sobre esta problemática, mas logo impôs-se a pergunta: até onde a linguagem dá conta do psíquico? Mesmo conceituando o Real, algo de inomeável escapa, e eram estes os fenômenos que me interpelavam na clínica com crianças impossibilitadas de organizar o corpo para ter acesso a um processo de alfabetização.

No que diz respeito ao registro ético, mobilizava-me a possibilidade de eu estar realizando indicações terapêuticas e tratamentos não apropriados, possibilitando intervenções inadequadas, sem que fosse escutada a verdadeira questão denunciada pela criança através de seu corpo.

Muitas de minhas dúvidas obtiveram respostas supervisionando o percurso de tratamentos de alguns pacientes .com dificuldades de aprendizagem, com queixas de hiperatividade e desorganização temporal que eram atendidos na Clínica da Universidade na qual eu era professora.Impossibilitados de suportarem o encargo financeiro de atendimentos particulares, realizavam apenas acompanhamento da área emocional, atendimento que a instituição podia lhes oferecer. Sem a intervenção de outros atendimentos, pude ir avaliando os efeitos deste tipo de escuta nas funções corporais ligadas ao aprender.

No percurso de investigação encontrei em colegas argentinos, Silvia Bleichmar e Ricardo Rodulfo , grande ressonância com nossas próprias preocupações com o tema. A primeira tem se orientado para fundamentar os primeiros tempos da constituição do psiquismo e para as suas possibilidades de intervenção sobre esses “tempos” na clínica psicanalítica, considerando o inconsciente como não dado desde as origens e tendo como referencial básico os textos freudianos e as contribuições de Laplanche; Ricardo Rodulfo, por seu lado, aprofunda entre outros diversos temas as questões relativas às patologias dos transtornos e suas implicações com a aprendizagem, a inscrição do sujeito através do seu corpo, procurando, inclusive, desenvolver aspectos metapsicológicos dos quadros que denomina de Transtorno Narcisista não psicótico, recortando conceitos- chaves do referencial psicanalítico freudiano e pós- freudiano.

Buscamos entender a constituição do sujeito psíquico e a relação desse movimento de constituição com as falhas instrumentais do seu corpo, que impedem ou dificultam a aquisição de noções ligadas ao tempo, espaço e linguagem, e que afetam o próprio tônus. Nossa atenção irá portanto se voltar ao Corpo dos Transtornos, concebidos enquanto efeitos de subjetivação e não de falhas neurológicas, registros facilmente confundidos.

TRANSTORNO OU SINTOMA:

Discrimina-se as noções de Transtorno e de Sintoma, entendendo-se, conforme coloca Freud em “Inibição, sintoma e angústia” (1926) e “ Pulsões e destinos de Pulsões” ( 1915), e segundo leitura de Sílvia Bleichmar, que entre os movimentos prévios à instauração da repressão originária, ocorrem movimentos pulsionais que, instalados no corpo, podem traduzir-se em transtornos das relações temporo-espaciais, ou seja, em dificuldades na instalação do processo primário.

Falamos em Transtorno referindo-nos ao que impede ou dificulta o sujeito de estruturar-se num segundo tempo de sexualidade, perturbações na instalação da tópica psíquica, que o limitam na organização de tempo e espaço e dos processos da lógica e do juízo.

São falhas dos mecanismos básicos da constituição do psiquismo: aparelho que, então, permanece aberto, não organizado pela repressão originária, ou seja, onde os estímulos exteriores penetram e não encontram sistemas de escoamento organizado para a energia que transportam. Os efeitos no sujeito psíquico mostram-se como impossibilidade ou dificuldades em armar totalidades de significações, desarticulando as aquisições iniciais das categorias de tempo, espaço e da lógica, instrumentos necessários para a organização de uma realidade externa.

Ao contrário, quando falamos em sintomas, pressupomos um aparelho psíquico que já organiza as percepções, onde há formações inconscientes que fazem funcionar a repressão originária, ordenando significações. Um inconsciente formado em extratos diferenciados, e pensado em termos de economia libidinal, pressupõe um sistema de trocas entre os sistemas psíquicos instalados. A produção de sintomas neste aparelho já diferenciado acusa falhas nas defesas organizadas, desequilíbrio neste processo de economia libidinal, ou seja, uma tentativa substituta da repressão, visando manter esta ordenação das significações nestes extratos.

Sílvia Bleichmar revisou o conceito de neurose na infância, pressupondo um sujeito em estruturação, um inconsciente não dado desde as origens, tendo como paradigma de base a repressão originária.

Usa este conceito enquanto proposta ordenadora para entender os tempos de estruturação do aparelho, tempos estes não genéticos, não lineares, mas onde uma gênese que vai sendo percebida num movimento sempre après-coup. Seu ponto de partida são as formulações de Freud em o “Inconsciente” e no texto “Recalcamento”, onde afirma-se que o recalcamento originário cria a diferença entre os sistemas psíquicos, ou seja, são separados o inconsciente do pré-consciente/ consciente. Portanto, através dos efeitos do recalcamento originário é que podemos saber quando há inconsciente, para então abordá-lo analiticamente.

Trabalhando o texto de Freud,” Inibição, Sintoma e Angústia” (1926), onde o sintoma é definido como um signo e um substitutivo de uma não satisfação pulsional, produzindo um conflito de caráter intrapsíquico, ressalta a idéia de que se todo o sintoma se manifesta como um signo, nem todo signo é um sintoma. Segundo a autora, embora essa afirmação possa parecer trivial, elucida muito da clínica infantil, onde muitos signos, manifestações da conduta infantil, não podem ser entendidos como sintomas no sentido psicanalítico, ou seja, como representação direta ou figurada de uma idéia ou conflito, de um desejo inconsciente.

Pode acontecer que o aparelho não tenha constituído as ligações necessárias para que o discurso do outro ingresse como representações-palavra, e que esse ingresso se dê em termos de representação-coisa, o que nos faria compreender porque a criança apresenta respostas apenas na motricidade. Poderiam então ser descritos como significantes que ingressam no aparato e disparam sistemas representacionais, produzindo passagem à motricidade, já que o aparelho não tem condições de processar aquelas questões. São exatamente estas as situações que Sílvia Bleichmar denomina de Transtorno na constituição psíquica.

No texto “Inconsciente”, (1912, 1697-1701) Freud examina como certas representações-palavra, ao circularem em torno de si mesmas, e sem relação com as representações-coisa, operam como representações-coisa e não como representação-palavra. Na criança, os processos secundários que separam a carga da representação, a partir do recalque originário, podem não estar constituídos e assim os significantes operariam sem articulação.

Embora Melanie Klein tenha trabalhado esta idéia através das defesas precoces, consideradas elementos constitutivos do psiquismo e anteriores à repressão originária, Sílvia Bleichmar diferencia-se dela por pensar estas mesmas defesas enquanto movimentos pulsionais precoces, passíveis de reestruturação quantitativa e integrativa no momento em que o aparato se constitui definitivamente. Além disso, contrapõe-se à teoria kleiniana no que diz respeito à diferença entre inconsciente originário e inconsciente desde as origens, bem como pelo fato de pensar a constituição da tópica psíquica num marco de uma tópica intersubjetiva.

O conceito de recalcamento originário, que ela passa a denominar de repressão originária, permite verificar a dominância estrutural no sujeito; pois é possível haver uma fratura em algum ponto, sem que isto leve necessariamente a diagnosticar uma estrutura que nela se baseie. Nesta perspectiva, podemos pensar numa neogênese enquanto efeitos de tratamento, ou seja, numa recomposição, diferente da abordagem de análise com neuróticos. Assim, a infância poderia ser concebida como um momento onde os representantes pulsionais se inscrevem, são recalcados e encontram seus destinos. Nos casos onde o sujeito apresenta fraturas neste recalcamento, tais representantes pulsionais não chegam a se organizar enquanto sintomas no sentido psicanalítico, mas conforme definição da autora, organizam-se como Transtornos, como em algumas disfunções corporais ligadas às patologias de aprendizagem.

A constituição inicial do sujeito

Retomando a teoria freudiana sobre o início da subjetivação, momento em que a cria humana se torna sujeito, é interessante recorrer a um de seus primeiros textos, Projeto de uma Psicologia para Neurólogos (1895), onde ele traça sua concepção inicial sobre o Aparelho Psíquico, concepção que será melhor delineada com a teorização da segunda tópica, onde o irrepresentável era encontrar uma maior integração ao Modelo.

É nesse texto, embora lance mão de um modelo de aparelho neurológico, que Freud formula sua idéia de como se dá a circulação e processamento da energia na cria humana. O esquema que constrói é capaz de descrever os primeiros movimentos que instauram o sujeito, as ligações que, por sua vez, originam as representações. É também nesse texto que formula o que será tomado sempre como referência pela Psicanálise, ou seja, o lugar da função materna, a intersubjetividade da tópica.

A partir destas concepções freudianas iniciais Silvia Bleichmar e Laplanche discutem a problemática da constituição inicial do sujeito. A questão fundamental não está simplesmente na resolução do âmbito auto conservativo, pois isto não conduz ao sistema de representações desligadas da necessidade. A transformação da energia somática em psíquica advém da intrusão do outro humano dotado de inconsciente, que inunda a cria com uma energia não qualificada, não traduzida, ocasionando o traumatismo. Como teoriza Laplanche à respeito da Sedução Originária, os gestos auto-conservativos do adulto são portadores de mensagens sexuais inconscientes para ele mesmo e incapazes de serem traduzidos pela criança. ( Laplanche, 1996)

A repressão originária – repressão destes significantes intrusivos- , instala-se a partir da impossibilidade do bebê decifrar estas mensagens carregadas de sentido e desejo, ou em outros termos, com o esforço de ligar o traumático que acompanha a sedução originária.

Quando falamos de “sedução originária” no sentido teorizado por Laplanche, falamos de uma situação não patológica, mas fundante do psiquismo: encontro de restos inconscientes de um adulto, restos que ele desconhece, com uma criança que busca a satisfação de suas necessidades autoconservativas. Encontro a partir do qual, através do recalcamento originário, instaura-se a pulsão e, consequentemente, o inconsciente, a tópica psíquica e a abertura de relações de conflito intrapsíquico e possibilidades de troca entre os sistemas.
Segundo tal perspectiva, o representante pulsional é a marca mnêmica da sexualidade pulsante materna. No auto-erotismo, primeiro tempo dos possíveis e posteriores caminhos desta pulsão, ainda não existe “uma unidade comparável ao ego”, ( Sigmund Freud, 1914) um sujeito capaz de amar. As pulsões se satisfazem independentemente uma das outras: são inscrições indiciais nos múltiplos signos de percepção, ligados à experiência de satisfação e de dor.

A passagem do auto-erotismo ao narcisismo ocorre a partir das ligações que a mãe propicia, frente à dirupção que a sua sexualidade instala no bebê. Faz-se necessário, então, como apresenta Silvia Bleichmar, diferenciar o inconsciente materno do narcisismo materno:

“ …el origen de la sexualidad humana no se instaura a partir de la articulación significante, de lenguage, instalada en el psiquismo materno, sino, precisamente del lado de lo inconciente, de las representaciones-cosa que circulan bajo los modos del proceso primario y de los investimientos masivos del autoerotismo reprimido. “(1993, 48 )

Portanto, os pré-requisitos de ligação desta energia sexual originária encontram-se no funcionamento do narcisismo materno, diferenciados do auto-erotismo, objetalizando-se numa comunicação que transvasa, dando possibilidades ao bebê de ingressar num horizonte saturante da castração.

Neste sentido, ainda comenta Silvia:

“… a origem do inconsciente é exógena, mas de uma exogeneidade que deve ser concebida não como simples exterioridade, mas como estrangeiro (étrangeté). Nesta diferença entre a exterioridade (perceptual, familiar ou, simplesmente, do meio externo), e o estranho do outro, radica o aporte absolutamente original de Jean Laplanche, porque se trata de uma exterioridade que marca os começos da vida psíquica como excitante e traumática e define para sempre as relações do sujeito com o mundo. ( 1996, 15 )

Estes destinos da intrusão do sexual, excitações que devem ser inibidas ou ligadas, são tarefas do ego. Antes da repressão originária, estes destinos devem encontrar resoluções através de conexões que são modos defensivos precoces. O movimento, a passagem do âmbito do auto-conservativo ao sexual, do corpo da necessidade para o corpo pulsional, é o que instala a pulsão, e que será “ o verdadeiro motor do progresso psíquico”. Seus movimentos definirão a constituição do sujeito.

A sexualidade da criança não vem diretamente do adulto, mas do par sexualidade- apego, efeito dos cuidados autoconservativos do outro. O nascimento do sexual deve ser assim pensado em termos de um metabolismo, que, através desta transformação, torna impossível traduzir aquilo do qual provém. ( Jean Laplanche, 1996, 153-164 )

Desta forma, a categoria de Sedução passa a definir-se como relação passividade-atividade. É uma relação assimétrica, onde o “plus” é um saber inconsciente tanto do sedutor como do seduzido.

Ainda sobre a teoria de Laplanche, gostaríamos de ressaltar um outro ponto a respeito da noção de Sedução Originária: na medida em que o emissor da mensagem enigmática ignora a maior parte da mesma e que a criança apenas possui meios inadequados e imperfeitos de metabolização ou de teorização do que lhe é comunicado, fica desqualificada, segundo o autor, qualquer causalidade linear entre o inconsciente e o discurso parental, por um lado, e o que a criança faz com isso, por outro lado. Assim, o que constitui o inconsciente nos seus inícios é o resíduo do “sentido a si mesmo ignorado da mensagem”do outro, e não de um saber inconsciente do outro sobre a criança. ( Jean Laplanche,1996, 25 ) A sexualidade do outro introduz um potencial de energia irredutível à autoconservação, energia esta que se constituirá em signo num movimento de après-coup.

É por esta razão que não podemos falar em sujeito no início da vida psíquica. Apenas com o recalcamento originário e ao mesmo tempo, instalação do ego e do narcisismo, é que o inconsciente fará signo.
Partindo desses conceitos, Sílvia Bleichmar apresenta duas conclusões que irão fundamentar todas suas investigações sobre a Fundação do Inconsciente:

“…en primer lugar, que el yo no se constituye en el vacío, sino sobre la base de las ligazones previas entre sistemas de representaciones preexistentes; y que estas ligazones consisten, de inicio, en investiduras colaterales (al modo como lo describimos con el conjunto de maniobras amorosas que acompañan a los cuidados primarios con los cuales la madre efracciona en el real viviente las zonas erógenas primarias, oral e anal). En segundo lugar, que en los comienzos de la vida este yo que produce inhibiciones y propicia ligazones del decurso excitatorio non está en el incipiente sujeto sino en el semejante humano, y sólo desde esta perspectiva es que se puede hablar, retomando una expresión que ha caído bastante en descrédito en los últimos años – y con justeza-, de un “yo auxiliar materno”, el cual no provee sólo los recursos para la vida sino que inscribe, de inicio, estos recursos en su potencialidad de “pulsión de vida”, es decir, de ordenamiento ligador propiciatorio de una articulación de la tendencia regulada a descarga.” ( 1993, 49 )

O que nos interessa pensar aqui com mais vagar é a possibilidade de ocorrerem falhas neste processo: estas podem estar seja do lado das constelações narcísicas no caso da estrutura da mãe, que a incapacita de funcionar enquanto objeto narcisizante; ou podem ser circunstanciais, como nos casos de depressão, quando a libido é retirada temporariamente.

Tomemos, porém, o caso em que lhe é possível realizar as funções sexualizantes primárias que permitem a instalação da pulsão, em que ela esteja propiciando os investimentos necessários à constituição de uma zona de excitação, sem no entanto, constituir-se em um objeto amoroso: seu olhar centrado de forma auto-erótica numa parte do corpo do bebê, não verá a totalidade do mesmo, sobre a qual seria possível instalar-se uma representação da totalidade do corpo, posteriormente inscrita pelo ego. Portanto, haveria aqui um desencadeamento de energia traumática sexualizante, sem que houvesse vias de acesso regidas pelo princípio de prazer para derivá-la. Também, não haveria construção de investimentos colaterais através de gestos e carícias, que possibilitariam ao bebê o desenvolvimento da alucinação primitiva do objeto indiciático: a partir disso, o bebê não diminui sua tensão endógena, agarrando-se ao objeto que nunca lhe propicia alívio, mesmo resolvendo a questão da auto-conservação. Haverá assim um déficit na narcisização primária.

Este desprazer tenderá a repetir-se, conforme coloca Freud no seu texto “Mais além do princípio do prazer” (1923) , numa compulsão de repetição traumática que retorna porque não conseguiu vias de ligação. Usando as concepções de Freud neste texto e as de Laplanche com a sua teoria da Sedução Generalizada, Sílvia Bleichmar irá afirmar que as pulsões sexuais de morte funcionariam segundo o princípio de energia livre ( princípio zero), sendo sua meta a descarga total, cujo preço é a aniquilação do objeto. A compulsão traumática deveria sua existência tanto à impossibilidade de ligar-se a uma significação, como à impossibilidade de descarregar-se: origina-se assim a repetição traumática a que está submetido um aparato incipiente.

Porque precisamos pensar nestes primeiros tempos da instalação do sexual? Justamente para investigarmos possibilidades clínicas de intervenção relativas a processos que dizem respeito aos primeiros tempos de instalação do inconsciente, antes da instalação da repressão originária.

Entende-se aqui que, a repressão originária constitui-se em dois tempos: o primeiro, passivo, momento de implantação dos significantes enigmáticos, quando estes ainda não estão reprimidos; segundo tempo, reatualização destes significantes, a partir dos atacantes- internos que o bebê deverá tentar ligar, numa tentativa de aplacá-los. Nesta tentativa de simbolização, algo permanece irrepresentável e é este algo que deve ser reprimido, ficando fora da significação, que Freud denomina de id.

A pulsão seria o impacto sobre o ego, da estimulação constante exercida, a partir do interior, pelas representações-coisa reprimidas, que podem ser designados como objetos-fonte da pulsão. Sílvia Bleichmar toma de Laplanche esta concepção de pulsão, (1993, 40 ) pensando-a como surgindo num tempo anterior à ocorrência do ataque produzido pela estimulação exercida, desde o interior, pelo ego, pelas representações- coisa reprimidas. Sua operância produz movimentos evacuativos antes mesmo da repressão instalá-la no inconsciente. O destino dos remanescentes excitatórios deverá ser sua transformação em possibilidades de conexões e derivações que constituiriam modos defensivos precoces.

Pensando num bebê que apresente falhas num processo inicial, o que acontecerá se não for instalada uma possibilidade efetiva de processar-se a repressão originária que ordena e estrutura os sistemas psíquicos? Estas inscrições originárias sexualizantes permanecerão não sepultadas, nem enlaçadas em significações possíveis, retornando de formas irrepresentáveis, como restos que ficam impossibilitados de significação, e que se acabam por se traduzir no que a autora chama de Transtorno.

Neste, ponto é importante lembrar que a pulsão exprime-se em dois registros: o afeto e a representação. O afeto é a tradução subjetiva da quantidade de energia pulsional, sendo que a finalidade do recalcamento é impedir o seu desenvolvimento. A partir do recalcamento, a representação vai para o inconsciente e o afeto tem três destinos possíveis: fica impedido de desenvolver-se, transforma-se numa quota de afeto qualitativamente diferente, como angústia, por ex, ou permanece , no todo ou em partes, como ele é, mas ligado a outras representações.

Portanto, uma hiperatividade e/ou desorganização de funções corporais pode estar indicando a existência de uma energia não ligada de forma que possa ser sustentada por uma significação. Falhas no recalcamento originário dificultam a separação da carga da representação, o que leva ao ato, em vez da separação entre ato e discurso.

É importante salientarmos mais uma vez que, nesta linha de raciocínio, pensa-se em predominância estrutural e não em estrutura homogênea; assim, pontos de fratura na instalação do recalcamento originário podem estar na origem das passagens à motricidade, dificultando a organização das significações.

Desta forma, entendemos poder pensar aspectos de pacientes com queixas de problemas de aprendizagem: hiperatividade e disfunções corporais ligadas à angústia disruptiva, não enlaçada adequadamente em significações que possam lhe dar uma ordenação, e não sustentada pelas representações-palavras.

O corpo como lugar de inscrições do sujeito que se constitui

Em geral, quando pais e professores queixam-se da hiperatividade de uma criança, será possível descrevê-la como portadora de um corpo que “se esparrama”, impossível de ser contido nos limites de uma folha de papel. Ela se desloca constantemente de um lado para o outro; quando sentada, parece sobre “espinhos” que não lhe permitem pensar. Acaba também atrapalhando a atenção dos colegas, o que , aos poucos,irá justificar sua exclusão da sala de aula.

Para situarmos a discussão destas queixas, ao material teórico que vimos desenvolvendo, gostaria de juntar a contribuição de Ricardo Rodulfo (1989 ).Sua contribuição mais própria consiste especificamente num olhar sobre o corpo, detalhando-o enquanto lugar no qual as primeiras inscrições se organizarão, até seu caminho em direção ao espaço da Folha , o que nos permitirá pensar a alfabetização e a aprendizagem em geral.

Fazendo uso de um modelo clinico, Rodulfo pontua três espaços, lugares de inflexão nos quais o sujeito gravita enquanto estrutura: corpo materno, espelho e folha de papel .Percorrendo estes espaços de subjetivação poderemos ir compreendendo porque tal criança não conseguirá fazer suas marcas numa folha, quais aspectos não foram inscritos anteriormente e onde ocorreram estas lacunas.

Segundo Rodulfo, tais lugares de inflexão são pré-fabricados pela criança: ela terá que constituí-los com os materiais de sua construção biológica, somados aos materiais oferecidos pelo mito familiar, através da função paterna e materna, etc… Em cada um desses lugares é produzida uma correlata corporeidade subjetiva; e embora não haja necessariamente uma sucessão temporal na conquista destes espaços, despreender-se deles é uma tarefa necessária à sua plena constituição.

Trata-se, portanto, de uma escrita do próprio corpo, pré-requisito para que se tenha acesso a um espaço de inscrição na folha de papel. Percorrer esses espaços, enfatizamos ainda uma vez, é absolutamente indispensável para a constituição de sua subjetivação. A proposta de Rodulfo é de que pensemos este percurso a partir da pergunta “onde vive esta criança?”

Lugares de ocupação:

Corpo——————Espelho——————–Folha

Carícia—————–Marca——————— Traço

O que pode ser encontrado nesse percurso são relações de junção, transporte do corpo ao espelho, do espelho a folha. Assim, a carícia e a marca estão no plano de signo e o traço no plano de significante.

O corpo materno é o lugar das sensações; quando toca o corpo da criança produz marcas – as carícias – marcas sobretudo de ordem táctil , gustativa e olfativa. Trata-se de marcas na carne que fazem com que esta carne se subjetive: a mãe escreve a criança, armando uma espacialidade simbólica. Estas carícias remetem a uma série de elementos relacionados a ditos inconscientes, ou seja, a mitos, imagos familiares, e outros conteúdos que contribuíram para a formação do corpo imaginado.

Este corpo inicialmente acariciado tem como a propriedade a continuidade, que bem podemos ilustrar com a fita de Moebius- corpo como superfície, como garatuja, ainda não organizado segundo as categorias de cheio ou vazio.

A criança não só vai sendo desenhada pela carícia e a retribui aos poucos, mas também busca ser desenhada por registros outros.Por participar da marca e do traço, portanto, a carícia pode ser definida como uma escrita no sentido mais primitivo, mais psicanalítico do termo- uma escrita significante, que provoca uma série de efeitos de significação sobre o próprio corpo. Através dela o sujeito irá armar sua corporeidade, armar seu circuito pulsional.. Mas essa descrição é ainda parcial, pois como já teorizou Freud sobre a sedução materna, teoria retomada por Laplanche em suas afirmações sobre a Sedução Originária,enquanto está sendo desenhada pela carícia, a criança também está sendo estruturada sexualmente. Aqui se faz presente outro conceito freudiano- o de vivência de satisfação- , mas num sentido mais amplo que o de uma simples repetição de uma experiência corporal prazerosa: o que está em jogo no acariciar e na vivência de satisfação é algo da ordem da experiência de subjetivação da criança.

Podemos falar, então, em vivência de subjetivação: um corpo que se humaniza através da escrita que é a vivência de satisfação. Desta forma, através das múltiplas redes criadas por ela, o sujeito vai se ligando a uma série de marcas, no registro que Freud denomina de prazer ou prazer/desprazer. Portanto, a carícia subjetiva.
Pensa-se, então, que esta experiência articulada por Freud como a “matriz da amamentação” e que transcende a esfera do oral por conter e envolver o abraço e a carícia, também pode ser pensada como uma cena de escritura mãe-filho, ou seja, a cena da escrita do aparato psíquico.

O espelho é o lugar das identificações mais decisivas enquanto constituição narcísica. Nesta transformação do corpo para o espelho, está implicada uma transformação da carícia em marca; e é preciso, para que essa transformação se gere que ela tenha possibilitado um corpo estruturado o que, por sua vez, habilita a criança a reconhecer-se no espelho. Ou seja, primeiro é necessário ter sido desenhado no plano da carícia para depois poder chegar a desenhar-se numa outra superfície.

Segundo Rodulfo, a vivência especular envolve um polimorfismo, entendido desde as primeiras inscrições no corpo até sua culminância na capacidade de reconhecimento visual que pressupõe uma separação entre o eu e não eu, ao qual ele denomina de individuação. Assim, antes da criança diferenciar-se, ela vai construindo partes de si através do corpo da mãe e só depois pode perceber as diferenças. Daí a anterioridade do corpo materno com relação ao espelho.

O traço fala da transformação da mão, de sua passagem de uma existência pictográfica – enquanto possessão libidinal do corpo solidamente ligado por pictogramas ao resto do corpo – para algo que pode ser compreendido como fabricação do exterior, transformação da mão no espaço deste exterior. Poder prender-se a uma folha de papel para inscrever seus traços enquanto sujeito implica na capacidade de substituição entre o corpo da mãe e a folha. Da mesma forma que poder deitar-se no divã implica em poder despreender-se do concreto do corpo do analista, assim também a escrita na folha enquanto subjetivação compreende uma substituição metafórica da ligação ao corpo materno.

Nessa possibilidade da escrita na folha é também presente a possibilidade de um ir-se, para habitar outro lugar simbólico, sustentado pela vertebração da carícia. Ricardo Rodulfo ilustra o processo através da função do baixo numa peça musical: é ele que faz a vertebração harmônica, impedindo a perda da composição musical. A possibilidade de inscrever-se numa folha de papel também envolve as diferentes organizações possíveis do tônus muscular enquanto função de vertebração do corpo, que por sua vez resulta, como vimos, do processo de ser desenhado pela mãe na carícia.

Estes corpos que “se esparramam”, denotando tônus inadequado, parecem falar-nos de uma escrita inicial falha, ou seja, um corpo que não foi suficientemente escrito pela carícia materna. Na visão de Sílvia Bleichmar, como se houvesse fraturas no entramado de base das significações iniciais, entramado que, segundo Rodulfo, produz a “vertebração”do corpo do sujeito.

Seguindo este pensamento, quando uma criança chega a escrever algo sobre a folha de papel, ainda que sejam seus primeiros traços, é porque cumpriu-se satisfatoriamente um longo trabalho de escrita sobre seu corpo. Mesmo que nestes trabalhos seja reconhecida uma mera representação primitiva de seu estado narcísico, não podemos esquecer que isso ocorreu num espaço exterior ao corpo materno. Assim já lhe pertence esta capacidade de resposta, que seria alheia a uma determinação consciente, como Freud coloca claramente na teorização das séries complementares.

Não existe uma linearidade rígida no movimento que leva o sujeito a habitar estes espaços. A diferença consiste na predominância de um ou de outro, com a possibilidade do sujeito mover-se e ressignificá-los..

Segundo Sílvia Bleichmar, em certos fracassos de aprendizagem devidos a um transtorno na constituição do sujeito, essas “passagens” de nível encontram-se dificultadas porque a criança não consegue terminar de inscrever-se nos lugares “anteriores” à folha. As fraturas no entramado de base tornam o corpo incapaz de sair de cena, de deixar as representações-palavras operarem com eficácia no circuito pulsional.

Nas dificuldades que estamos abordando, o corpo não está fragmentado, mas tampouco se encontra suficientemente organizado para ser um instrumento metafórico. Apresenta falhas na elaboração de funções, funções essas indispensáveis para sua organização como instrumento, ou seja, pode ser descrito como um corpo predominantemente “tubo” , onde as informações penetram mas apenas para escoar, sem a possibilidade de uma adequada organização. Ou seja, que encontramo-nos aparentemente diante de corpos ainda não habitados por um sujeito que se pergunte sobre si mesmo; as informações que penetram não conseguem se enlaçar numa organização inicial, comportando-se quase como num processo de digestão mal feito.

Marca-se assim a idéia que compartilhamos com Sílvia Bleichmar, a respeito da não homogeneidade da estrutura. Num mesmo sujeito coabitam diferentes materiais, provenientes de diferentes níveis de elaboração psíquica. Em certos casos, como os que estamos focalizando, há uma tal heterogeneidade que o sujeito encontra uma enorme dificuldade para avançar na direção da definição da estrutura edípica de chegada, organizando melhor uma escolha neurótica.

O Corpo e a constituição da Lógica, do Tempo e do Espaço

É no próprio processo de constituição do sujeito que deve ser pensada a gênese da temporalidade do espaço e da lógica: assim, temos que buscá-la na organização do sistema inconsciente.

A constituição de um sistema significante definido pela linguagem, operando desde o sistema pré-consciente, atua como uma contracarga no processo que separa num mesmo movimento o sistema inconsciente do pré-consciente, criando a possibilidade de dissociação entre o afeto e a representação. Assim, segundo Sílvia Bleichmar, é o caráter de representação-palavra que possibilita a instalação, no pré-consciente, da lógica e da temporalidade.

Apesar do inconsciente se constituir num reservatório da memória, nele estão apenas marcas mnêmicas. A memória faz parte de um pré-consciente que, caso instalado, permite que haja um sujeito que recorda.

O inconsciente define-se pela atemporalidade, ausência de lógica e pela singularidade; nesta linha de raciocínio, a linguagem é a materialidade da contracarga do pré-consciente, assim como a pulsão o é com respeito ao sistema inconsciente.

Sílvia Bleichmar ( 1986, 48) conclui que o mesmo adulto que sexualiza a criança também instala um sistema de proibições, proporcionando as representações com as quais se realiza a contracarga ao inconsciente: é através da defasagem entre palavra e ato, inconsciente e pré-consciente, representação-coisa e representação-palavra que se instala a relação entre os sistemas, originando a fantasia, a teoria sexual infantil e a recordação encobridora.

Trata-se, então, de pensarmos o início da significação como uma profunda mutação dos significantes, ou como uma diferenciação entre as duas tópicas, dois sistemas de cargas , dois tipos de conteúdos, entre representações-coisa e representações-palavra.

Aqui, acredito ser importante situar a opinião da autora em relação à posição lacaniana frente ao assunto:
No se trataria, entonces, de contraponer a la estructura significante de Lacan la estructura del significado en el inconciente, sino de resituar la problematica que, desde nuestro punto de vista, se resume en los siguintes terminos: el inconciente es una estructura radicalmente diversa del preconciente-conciente, cuya característica es la de ser plausible de ser significada en la medida en que las representaciones-cosa se ponen en contacto con las representaciones-palabra. (1986, 49 )

A significação não está dada no inconsciente , mas é efeito da cisão através do qual aquilo que é perturbante para o sujeito fica reprimido:A fundação de instâncias distintas através da repressão primária coloca o sujeito contraposto ao seu próprio inconsciente, uma instância alheia a si mesmo.

A passagem da identidade de percepção à identidade de pensamento é possibilitada pelos processos secundários que constituem sistemas de demora.

A curiosidade intelectual enquanto impulso epistemofílico original, difere da inibição enquanto empobrecimento funcional, efeito de contracarga do ego. Esta última está ligada a uma produção de repressão neurótica e a primeira com os movimentos iniciais, onde ainda não se instalou a diferenciação, efeito da repressão originária. É só a partir desta diferenciação que se produzirá a angústia e a repressão secundária organizará formas de evitá-la, entre as quais, a inibição.

Esta diferenciação é muito importante na clínica dos problemas de aprendizagem, pois estabelece diferentes abordagens na condução da técnica: a inibição neurótica convoca ao trabalho de desconstrução, ao passo que a não instalação da curiosidade intelectual, enquanto possibilidade de surgimento da angústia, convoca ao trabalho de fazer emergir um sujeito, situação que predomina nos casos que investigamos.

Pode-se pensar o mesmo em relação às noções de tempo e espaço: um “perder-se” fazendo emergir a angústia, ou um deambular que traduz um sentido através da busca de uma determinada direção ou espaço, fala-nos de um sintoma que pode ser desvelado. Um “perder-se”ou um deambular sem angústia, sem determinado sentido, fala-nos ao contrário de uma organização não adequada da repressão originária, o que impede conseqüentemente um desenvolvimento da temporalidade regida por processos secundários.

É deste fracasso inicial que surgem as questões ligadas ao empobrecimento da capacidade de metaforizar, às dificuldades cognitivas para se entender palavras de duplo sentido e chistes; compreende-se assim, o comprometimento na capacidade de simbolização. Todos esses processos não devem ser equiparados ao desconhecimento, entendido como negação, defesa neurótica; trata-se de um não ingresso na diferença.

É também essa diferenciação que se encontra nas origens da organização da lógica e do juízo. Desconhecer, enquanto mecanismo neurótico, já implica em se ter sofrido o efeito da repressão dos significantes pulsionais, enquanto resíduos do vínculo sexualizante das origens.

Desta forma também é possível diferenciar em termos clínicos as dificuldades de memória, tão comuns nas queixas de aprendizagem. O sujeito neurótico pode apresentar repressão de significantes cujo aparecimento na consciência desencadeariam angústia; nas dificuldades de memória também podem dever-se a falhas na origem da instalação da tópica, traduzindo-se por lacunas nas ligações entre as significações. O primeiro fenômeno é resultante do não poder lembrar e o segundo, do não ter nada organizado, ou seja, da ausência de marcas mnêmicas enlaçadas segundo o modo de organização do pré-consciente.

Na clínica, certos pacientes são muitas vezes considerados resistentes em função de seus silêncios e da exigüidade de sua produção, pois são pensados a partir de um referencial relacionado à formação neurótica. Mas quando falamos em falhas na constituição inicial, entendemos que o “não sei”- constantemente repetido quando solicitamos a um paciente que associe- indica uma memória vazia de conexões, incapaz de articular significações que dêem ao sujeito uma capacidade de implicar-se naquilo para o qual é convocado.

Sami-Ali (1979), autor que investiga a gênese e a hierarquização das funções psicossomáticas e das desarmonias evolutivas, também pode ajudar-nos a pensar as problemáticas da organização da temporo-espacialidade.

Esse autor considera que os processos da sensório-motricidade elaboram-se pouco a pouco, a partir do processo de projeção e introjeção. É a esse processo que compete a criação de um dentro e um fora, separando o que pertence ao sujeito daquilo que lhe é estranho.

O sujeito constitui-se em relação a um espaço objetivo após o estabelecimento de um espaço entre ele e a figura materna; igualmente, o tempo enquanto categoria lógica, é constituído a partir do tempo intermediado entre ele e o objeto. O tempo se abre como um intervalo de historização entre um passado e um futuro. Portanto, as categorias de tempo e espaço organizam-se na medida em que o sujeito se situa numa cadeia de significantes no mundo, na medida em que ele consegue se situar em relação a pontos de referência, organização obtida a partir da estratificação do aparato, possibilitada pelo recalcamento originário.

As dificuldades na organização de um espaço lógico, implicam numa diferenciação incompleta entre o externo e o interno.Referindo-se a esses sujeitos que apresentam dificuldades de aprendizagem ligadas à não organização das funções temporo-espaciais, Sami-Ali fala de uma “ausência global de marco de referência”, uma simplificação nos mecanismos cognitivos, uma torpeza do imaginário.

Ainda, ao trabalhar a relação entre o corpo e a gênese do conceito de tempo, Sami-Ali remonta ao texto freudiano do “Bloco Maravilhoso”: algo que ocupa um lugar no espaço e compõe-se de capas superpostas, voltado ao interno e ao externo, com receptividade inesgotável para as percepções, sendo capaz também de conservar as marcas mnêmicas destas percepções. Ou seja, um objeto encarnando a capacidade do aparato psíquico de, simultaneamente, esvaziar-se para perceber e encher-se para recordar. Catexias inconscientes que emanam do interior e atravessam sem obstáculo o sistema percepção- consciência, são alternativamente enviadas e retiradas em um ritmo rápido. Periodicamente, rompe-se o contato entre superfície e profundidade, o qual deixa um vazio que determina os tempos de catexia. Há uma redação em grau zero de excitação, com o qual é oferecido ao registro de recordações uma superfície restrita , ainda que indefinidamente renovável. Conforme entende Sami-Ali, o processo perceptivo começa e termina nesta catexia. Nesta série de impressões a memória recorta figuras privilegiadas, nas quais é recapitulado, para além da recordação, o enigma da existência corporal. (1979, 43-45 )

O vazio que caracteriza a ausência de catexização em uma dupla relação com a memória e percepção, traduz a necessidade do aparato psíquico de descarregar-se regularmente. A experiência perceptiva verifica-se de novo pelo “borrão” ( condição econômica do aparato psíquico) e não pela memória motivada (tábula rasa). O sistema pré-consciente organiza-se em torno de um vazio que condiciona , por sua vez, a aparição da consciência no plano da percepção e o registro da percepção no plano da memória. Assim, o vazio, conforme entende Freud neste texto, ( 1924,2808-2811 ) imprime a todo o sistema um ritmo descontínuo, fundando a temporalidade.

Porém, uma importante questão a ser levantada quando consideramos as patologias que envolvem a noção de temporalidade, é que o vazio da não- constituição do sujeito irá impedi-lo de organizar séries temporais. Quanto mais próximo nos encontrarmos do funcionamento primitivo do aparato, mais prevalecerá a função de “borrão”sobre a função de registrar, mesmo que estejamos nos referindo a registros precoces fortes. As repetições desse tipo de fatos não indicarão o surgimento do reprimido, mas sim a impossibilidade da repressão.
Esta idéia coloca novamente na gênese do espaço e do tempo a relação primordial do sujeito com a figura materna. Enquanto o sujeito não possui uma autonomia corporal é a figura materna que assume a organização deste tempo, sendo que o tempo objetivo aparecerá, posteriormente, como prolongação e transformação do tempo inscrito no corpo.

O Transtorno na constituição do sujeito e a transferência

O acompanhamento de pacientes do tipo que focalizamos neste trabalho suscita algumas idéias sobre seu modo de viver o processo da transferência: predomina nos materiais clínicos um pedido de presentificação do corpo e , principalmente do olhar do terapeuta.

Se retomarmos os Escritos Técnicos de Freud, lembramos que a transferência é aí assimilada a uma de suas vertentes, a neurose de transferência. E, conseqüentemente, se falamos em neurose, pressupomos um funcionamento de um aparato clivado pela repressão originária, um sujeito capaz de produzir sintomas para representá-lo: o que é possível de ser transferido, são representações de um objeto investido, mantido no inconsciente.

Quando se trata de um funcionamento onde há predomínio do inconsciente, ocorre “transferência de investimentos”. Temos como exemplo os processos psicóticos, nos quais ocorreria a transferência de investimentos massivos. Nestes quadros, a tendência é de que se repita em tratamento a “fusão mortífera com a mãe”. ( Ginete Michaud, 1983 ) O analista é situado predominantemente como objeto no campo do psicótico, sendo que seu corpo é usado como tal.

E quando o sujeito se encontra num momento pulsional marcadamente auto-erótico, em momentos anteriores a uma adequada instalação da repressão originária ? Ele certamente não estabelece transferência a partir de uma representação integrada de um objeto inconscientemente investido, mas seria ele capaz de algum tipo de ligação transferencial?

Poderíamos pensar que este sujeito incipiente que demanda o olhar do outro ainda precisa do aspecto corporal do terapeuta para sentir-se existindo: o corpo do outro é a garantia da presença de si mesmo enquanto sujeito.

Buscando, para discutir esta questão, elementos no processo de constituição do sujeito, podemos recorrer às teorizações de Sami-Ali (1979) nas quais são enfatizados momentos ligados ao conhecimento de seu rosto: um primeiro tempo de reconhecimento de si mesmo, que é o de não ter rosto; um segundo, caracterizado pela vivência de se ter rosto do outro e um terceiro, definido pela percepção do rosto do outro como outro.

A angústia do estranho instalada no terceiro tempo, falaria da possibilidade de estabelecer uma distância do outro consigo mesmo, um espaço delimitado por um dentro e um fora; em termos freudianos, estaríamos diante da instalação de diferenciações dentro da tópica.

Como lembra esse autor, o rosto próprio de forma ambígua começa a existir sob o ponto de vista dos outros. Neste primeiro momento, o rosto é um dado do mundo exterior, significado por um vazio no nível da imagem do corpo, vazio da não – constituição. Assim, por volta dos três meses de idade,o sujeito possui primeiramente o rosto da mãe, desde o início da visão binocular; é este rosto o objeto de identificação primária, coincidindo com o campo visual imediato, tornando indiscerníveis o ver e o ser visto, visão e órgão da visão, sujeito e objeto.
Somente após essa etapa é possível a emergência da angústia frente ao estranho: não se trata do outro em si, nem em relação com ele mesmo, mas sim do outro em relação com os demais que agora se manifestam como estranhos. A angústia do estranho caracteriza, portanto, o momento em que a identificação com o rosto da mãe cede lugar a uma projeção que introduz a diferença e a distância do outro consigo mesmo, a formação de um espaço delimitado por um dentro e um fora. Perceber o rosto da mãe como diferente dos outros rostos é pressentir a possibilidade de ter um rosto diferente do rosto da mãe, e é essa possibilidade de ser diferente que desperta angústia.

Assim, o sujeito que não alcança sua identidade corporal é incapaz de constituir um objeto idêntico a si mesmo frente ao espelho, não se vê como outro, mas vê o outro que é ele mesmo.

O processo de estabelecimento de distâncias mediante a projeção da figura materna tem várias conseqüências: a criança mostra-se disposta a separar-se de seus materiais reais, assimilados tanto à mãe como a uma parte do seu corpo; aparece o sonho em forma de pesadelo, elaborando a problemática da presença e ausência. O júbilo do espelho assinala a culminância de um processo de projeção cuja finalidade é constituir em uma diferença o rosto do outro com o qual o sujeito havia primeiramente se identificado.

A gênese da organização espacial encontra-se na etapa do espaço especular, onde o outro é a imagem do sujeito. A ambigüidade encontra-se na coexistência de duas formas espaciais excludentes: a experiência primordial de espaço como estrutura imaginária em que o próprio corpo dá origem tanto à forma quanto ao conteúdo de representação, e sua transposição parcial a um marco de referência que coincide com a realidade do mundo. Ocorrendo uma regressão limitada, o espaço primitivo surge novamente, afetando a atividade perceptiva que se subtrai da realidade.

É na experiência especular, onde o sujeito começa a ser tendo o rosto do outro, simultaneamente familiar e estranho, que encontramos a potencialidade de elaboração da imagem do corpo enquanto estrutura imaginária (experiência do duplo).

As crianças que apresentam a problemática aqui estudada, estando situadas num momento de repressão originária falha, e trazendo em seu corpo efeitos de desorganização, falam desse momento segundo, onde a possibilidade de ter um rosto ainda depende do rosto do outro. O processo deveria culminar com o terceiro momento, onde o rosto do outro é reconhecido como estranho a si mesmo: para tal, é necessário que a criança elabore a problemática da presença- ausência, despreendendo-se do corpo da mãe, num primeiro estágio sentida enquanto parte de si mesma.

Para esclarecer um pouco mais esse processo poderíamos também nos remeter, ao conceito de Espaço transicional de Winnicott ( 1982 ) definido como um campo intermediário entre o corpo materno e sua representação.

O tratamento torna-se efetivo, a partir de uma cena de “jogo” – subentendido aqui como a possibilidade de estabelecimento de comunicação- cujo entorno cria condições para que o paciente coloque em cena pedaços desconectados de sua história. Seu corpo desorganizado na cena, representando os efeitos da sua desarticulação significante enquanto sujeito, move-se na direção do corpo do outro. Assim, nesta cena, onde os corpos desempenham uma função de figura principal, instala-se uma possibilidade de articulação de simbolizações faltantes na história do sujeito. Nesta cena, que winnicotianamente poderíamos chamar de lúdica, cria-se um espaço para o surgimento das representações faltantes, não necessariamente ligadas ao registro verbal enquanto sentido intencional da palavra, mas ressoantes de todos os sentidos que elas contêm, quando proferidas.

Em referência ainda ao corpo do analista na cena e em associação ao Jogo do Rabisco de Winnicott, (1985 ) podemos pensar naqueles exemplos clínicos onde a criança solicita que o analista a acompanhe no ato de desenhar. Nesse tipo de situação, as crianças neuróticas fazem emergir a competição edípica, tecendo comentários críticos ou auto-críticos, elogiosos ou auto elogiosos, olhando o desenho do analista, exibindo ou escondendo o seu; ao passo que, nas patologias de Transtorno que estamos focando, a criança não focaliza predominantemente o conteúdo do desenho que o analista está fazendo, mas sim o seu ato global de a estar acompanhando.

Este pedido de olhar, de ser acompanhada na atividade, também pode ser pensado a partir do que Freud coloca sobre as primeiras etapas da organização pré-genital, (1905 ), descritas como marcadas por modalidades amorosas marcadas pela fantasia de devorar e incorporar o objeto, compatíveis com a supressão da existência separada do mesmo.

Em muitas crianças, este pedido é tão exigente que parece corresponder à fase, também mencionada por Freud, em que a criança tenta dominar o objeto, sem temor de danificá-lo, numa atitude que se aproxima ao ódio. São situações nas quais, conjuntamente com a hiperatividade da criança, sentímo-nos “exaustos” após uma sessão; muitas vezes, tende-se a responsabilizar por essa exaustão os movimentos físicos que fomos convocados a realizar com ela. Penso, no entanto, que a responsável é justamente essa exigência pulsional dos estados pré-genitais.

Muitas vezes, o analista sente-se desconfortável para fazer face a esta exigência transferencial, ou seja, frente à tarefa de sustentar a solicitação de se deixar devorar, incorporar e dominar, pedidos que aparecem de forma muito mais concreta no tratamento de crianças que no de adultos.

É nesse sentido que nos referimos ao que parece ser uma necessidade da criança de que o corpo do analista funcione como presentificação de sua existência enquanto sujeito. Assim, neste ato de desenhar com o analista, ou mesmo só realizar qualquer outra atividade, despreende-se da criança uma visível satisfação por estar sendo acompanhada, independentemente dos resultados de sua produção.

Muitas vezes ela esboça um início de instalação de regra no jogo, estipulando , por ex, uma contagem de pontos ou qualquer outro limite. Mas, logo que a atividade começa a se desenvolver, esta tênue intenção se desvanece; isto ocorre não por seus impedimentos cognitivos ou neurológicos com respeito às categorias de temporalidade e espacialidade, mas porque ela ainda se encontra presa, se nos referirmos ao momento seu no processo de constituição como sujeito, num tempo anterior àquele que lhe possibilitaria colocar-se numa ordem quantitativa, num espaço definido. Ela visa apenas sentir-se existindo, mesmo funcionando corporalmente como um grande magma que se esparrama, como uma superfície contínua, para usar as palavras de Ricardo Rodulfo.
É neste “tomar emprestado o corpo do outro” que se organizam basicamente as significações faltantes. Por isto verificamos, ao longo de anos como supervisora de estagiários de Psicologia e de colegas iniciantes, cuja tarefa era aprender a escutar o paciente, antes de preocupar-se com interpretações e grandes elocubrações teóricas, que estas escutas produziam grandes efeitos nas patologias de Transtorno. Estes profissionais iniciantes possuíam, antes de um saber organizado sobre sua tarefa, uma grande disponibilidade para escutar e entender, aspecto primordial no desenrolar desta cena. Muitas vezes pude presenciar efeitos que não estavam ligados ao conteúdo das palavras, mas sim à forma como eram ditas, fosse expressando afeto, fosse marcando um momento, funcionando como uma pontuação de limite no tempo e no espaço da cena. Assim, a voz , com todas suas possibilidades de registros, é que era a produtora de efeitos e não somente o sentido da palavra proferida.

Gostaria de ressaltar que não estou me referindo a efeitos de cura, comumente observados em inícios de tratamento, onde se verifica alguma melhora sintomática como consequência da organização do próprio enquadre terapêutico. Refiro-me, sim, a movimentos verdadeiramente estruturantes nestes sujeitos incipientemente organizados.

Em termos contra – transferenciais, produz-se uma sensação de não estarmos fazendo nada: “o que estou fazendo?” “não estou fazendo nada!” “Imagine se os pais soubessem que eu não estou fazendo nada! “ Estes dizeres são comuns no caso de terapeutas iniciantes,quando trabalham com esse tipo de criança que não os convoca para decifrar enigmas, como no caso das neuróticas.

Em vez de enigmas, elas produzem associações por contigüidade, sem conseguir despreender-se das características concretas das sensações iniciais. Estão impedidas de metaforizar o aspecto traumático sofrido nestas vivências, e conseqüentemente não conseguem organizar a experiência para um relato segundo as leis da lógica, do tempo e do espaço produzidas pela linguagem neurótica.

Com estas últimas, as crianças predominantemente neuróticas, a queixa dos terapeutas iniciantes é de não estarem entendendo o material, sentindo-se incapazes de decifrar. Mas conseguem se manter atentos para descobrir alguma pista de significação, que sempre surge e os realimenta.

Já com o sujeito do Transtorno, urge ficar “à sua disposição” de uma forma diferente daquela onde basta dispormos de uma escuta atenta ao sentido das palavras. Toda a situação funciona como se ele fosse extraindo pedaços de nós e, na maioria das vezes, não podemos ter clareza quanto aos aspectos de nossos atos e/ou palavras que produziram sobre ele certos efeitos.

Neste sentido, estes pacientes desarticulam o saber do profissional que está iniciando e que necessita como alimento narcísico, de algumas certezas do tipo causa-efeito para sentir-se garantido no seu trabalho.
Ao mesmo tempo, as possibilidades de produção de efeitos aumentam exatamente através deste conflito presente no terapeuta entre saber se é ele que não está desempenhando sua tarefa adequadamente, ou se o que existe são limitações estruturais da criança. A situação é comparável ao momento inicial pós-nascimento, onde a figura materna tenta identificar o que quer seu bebê e o que ele precisa. Mistura-se aí também, um pouco daquilo que Piera Aulagnier chama de violência primária ( 1993 ) necessária à função materna inicial; ou seja, o terapeuta, nesta busca, acaba ofertando significações ao paciente, ajudando na construção de junções faltantes de sua história.

Tal momento contra-transferencial também evoca o Jogo do Rabisco de Winnicott. Clinicamente, ele se oferece como possibilidade de fazer emergir uma significação, um sujeito. Não é uma técnica predominantemente voltada para a busca do simbólico, dos conteúdos reprimidos; mas é sim, uma proposta de criar um entorno capaz de fazer emergir uma produção inicial de sujeito: antes da forma é o traço que importa.

Essa situação parece-nos bastante semelhante à função do analista que acreditamos que o analista deve desempenhar no trabalho com crianças apresentando este tipo de estruturação: através de ligações o faltantes, propiciar à emergência de um sujeito capaz de organizar-se num tempo e espaço em que seja possível discriminar-se do outro.

Mas esse processo de historização – que Silvia Bleichmar caracteriza como a gradativa estruturação de um modo significante dos fatos inscritos – ( 1993 ) não passa necessariamente pelo campo da palavra: são trocas que se estabelecem através da voz, sorrisos, olhares, modulações afetivas diversas que vão tingindo a cena de diversas significações. Assim, a figura do analista vai, através de ações ou /e palavras intencionais ou não, fazendo próteses, produzindo significações em representações- coisas, possibilitando que estas sensações traumáticas primitivas, estes excessos de quantum pulsional, possam derivar-se para uma instância capaz de produzir efeitos de significação.

O que se transfere nestes casos? Objetos parciais, que se configuram num pedido de ligação destes investimentos. O essencial é olhar para o corpo do terapeuta, como se assim extraísse dele pedaços dele e, numa relação onde ainda não se é um, como se buscasse a regra da junção daquelas partes reais; essencial também é o pedido de um olhar para o seu corpo, como se assim pudesse sentir-se inundado com significação.
Seria este pedido uma busca de preenchimento de uma função materna inicial que falhou? A compulsão à repetição poderia ser definida como uma busca de olhar significante?

Lançando mão do conceitual psicanalítico, podemos afirmar ser impossível recriar aquilo que faltou num determinado momento da vida do sujeito; mas como terapeutas podemos ajudar no estabelecimento de significações do ocorrido, o que produz efeitos de recomposição do passado por après-coup, no presente.
A compulsão à repetição estaria situada justamente neste corpo desconectado de um espaço e tempo objetivos, que repete um estado de não organização e, ao mesmo tempo, constitui uma busca do corpo do outro, sem que se articule uma pergunta metafórica para o analista.

Nesse sentido, o diferencial diagnóstico é fundamental, porque nos remete à clinica da transferência: no trabalho com pacientes que se situam numa problemática do Transtorno, na medida em que predominam falhas de ligação significante (representação-palavra) e não de pictogramas de sensação, não haveria , como na psicose, necessidade de toque, mas de um olhar que os especularize.

Esses pacientes necessitam ter sua produção confirmada pelo olhar do outro, como se buscassem incessantemente esta especularização inicial que, em sua história, não teria sido bem organizada. Eles ainda não podem se reconhecer firmemente nas suas diferenças enquanto sujeitos sem o fortalecimento dado pelo reconhecimento inicial de um olhar que os especularize, que os ajude a organizar suas respostas.
A tarefa principal com estes sujeitos é sustentar uma escuta de forma a permitir a organização de suas significações. Qualquer processo que faça economia desta elaboração dificultará ou impedirá a emergência de um sujeito capaz de discriminar-se.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL NO TRANSTORNO

Pensando o transcurso de diferentes temáticas trabalhadas por estes pacientes durante seu tratamento, surgem questões de expressa relevância para situarmos diferenciais diagnósticos.

Um dos aspectos fundamentais refere-se ao tipo de transferência, que se revela no pedido de especularidade. Esta necessidade de ser olhado, de permanecer no campo do olhar do terapeuta, coloca-se como uma característica fundamental neste tipo de clínica. Trata-se de sujeitos, como já notamos, que necessitam muito da presença concreta de outra pessoa, o que se traduz por múltiplos pedidos de ajuda para um melhor desempenho quando estão sendo olhados.

Diferem das crianças portadoras de formações do tipo melancólico, que ficam permanentemente aderidas e nunca terminam de se inscrever; estas buscam o corpo do terapeuta quase como segunda pele, num predomínio de simbiose, o que se traduz no registro contra-transferencial por uma sufocante atmosfera afetiva.
Também diferem do pedido de olhar da estrutura neurótica, a serviço da sedução e do exibicionismo; este tipo de criança busca nos analistas o olhar de aprovação e admiração, mas como já é portadora de um enigma inconsciente, tenta esconder, disfarçar este pedido. O analista percebe este pedido e percebe a necessidade de recusá-lo.

Também é necessário distinguir a problemática do Transtorno de um quadro fóbico, onde o corpo do outro funciona como aplacamento e evitação da angústia de perder-se; na fobia, o afastamento do corpo do outro gera desespero, mas no tipo de paciente que estamos focalizando isso não ocorre : para eles perderem-se equivale apenas a ficar sem referencial .

No sujeito do Transtorno, o olhar funciona como organizador das experiências, inclusive motora. A busca do corpo do analista não é sentida como busca de uma segunda pele, nem como busca de aprovação, mas como um meio de organizar-se.

Desta forma, o corpo do outro é usado como espelho para orientar-se, diferentemente do psicótico que adere a esse corpo. Para o sujeito do Transtorno, o corpo do outro funciona como um “acompanhante narcisista”, conforme Ricardo Rodulfo ( 1995) encarregado de organizar os quadros corporais e temporo-espaciais e não, como no fóbico, enquanto aplacador da angústia de separação.

Podemos observar nessas crianças uma certa torpeza, não só motora (hipotonia), mas também de pensamento. Como se precisassem do corpo do outro para levar seu próprio corpo para a folha. É um quadro diferente daqueles onde há deficiência cognitiva, pois nesses últimos as crianças não respondem, mesmo quando auxíliadas. No Transtorno, a partir da presença do outro, há uma nítida melhoria de desempenho na tarefa que está sendo realizada.

Consideramos ainda importante comentar a tendência concreta de pensamento, bastante característica deste tipo de paciente com Transtorno corporal de ordem psíquica. São crianças que não organizaram seus conflitos, no sentido próprio da formação neurótica, o que conseqüentemente, possibilitar-lhes-ia organizarem enigmaticamente suas questões, num registro simbólico enriquecido. Esta impossibilidade de organizar uma queixa definida manifesta-se também no tipo de pensamento e no jogo: verificam-se aqui produções que se esvaziam e associações que sempre acabam de se completar no registro concreto do corpo. O registro verbal tende a manifestar-se empobrecido, diluindo-se na motricidade. O trajeto do pensamento mostra-se pouco consistente, o que explica as dificuldades que apresentam na aprendizagem, assim como a desatenção da qual geralmente são portadoras.
Lembremo-nos que o surgimento de um sujeito passa pela possibilidade dele perguntar-se por si mesmo, de organizar um fantasma. Ora, nesses quadros de Transtorno que examinamos, há exatamente dificuldade de organização dessa trama singular. E essa possibilidade parece poder emergir a partir de uma intervenção terapêutica onde também o corpo do analista funciona como mobilizador desta organização.
Tal dificuldade de produzir-se enquanto enigma, reflete-se na concretude de pensamento e na impossibilidade de entender a duplicidade de significação pertinente à escrita, leitura e ao número.
Esta diminuição da quantidade de energia desligada, ou seja, o aumento de ligações, também repercute no sistema de memória do psiquismo; esta irá se enriquecer, na medida em também se funda a partir destas ligações, de efeitos de sentido, adquiridos através da repetição de trilhamentos. Esta abordagem metapsicológica do fenômeno da memória aponta para uma série de questões.
Existem as dificuldades de memória de ordem neurótica, onde a repressão impede que algo chegue à consciência, num funcionamento inter-sistêmico da economia psíquica , dentro da tópica. Nestes casos falamos do esquecimento, característica própria dos mecanismos histéricos.
Mas existem dificuldades de memória que não parecem ser da ordem de uma “memória vazia”, mas sim de um “vazio de memória”, parafraseando Ricardo Rodulfo (1979) Pensamos aqui no caso de sujeitos com imensas dificuldades em reter informações, fato que significa a impossibilidade de ligá-las e, portanto, dar- lhes um sentido integrado aos das informações anteriormente adquiridas. Portanto, não se trata aqui de não “querer” associar, como no caso da neurose, mas de não se dispor desses caminhos de forma bem organizados, o que é típico nos casos de transtornos precoces na subjetivação.
Fica evidente a dificuldade de aprendizagem de um sujeito com “vazio de memória”: a informação não é costurada, o que a faz perder-se, como se ela jamais houvesse um dia passado por ele. Esta pode ser uma das possibilidades de interpretação para uma das queixas predominantes nestes quadros que investigamos, ou seja, a dificuldade de reconhecer as letras já vistas anteriormente: elas permanecem apenas como um traço que não se veste de significação.

Conclusões:

Após acompanhamento e investigação de vários casos onde deparávamos-nos com “Corpos-tubos”, existindo predominantemente funcionando com entradas e saídas, podemos observar evoluções no sentido do estabelecimento de diferenciações nesta mesma funcionalidade corporal e psíquica.
Numa perspectiva metapsicológica, desses corpos-tubos aos poucos emergiam sujeitos, passando a perguntar-se sobre si mesmos, a expressar seus desejos e temores, capazes de manterem-se ligados a um conglomerado representacional no momento em que emerge o desprazer, produto da excitação. Portanto, capazes de executar movimentos que tendem, mediante um trabalho psíquico, ligar o excesso de energia a uma representação ou a um grupo delas.

Um outro aspecto reforçado nesta investigação é a concepção de uma estrutura não homogênea e a importância de se encarar o sujeito como potencialidade. Acredito que estas duas posturas são essenciais para podermos entender e intervir nos quadros onde há Transtorno na constituição do sujeito.
Antes de qualquer coisa, eles nos remetem a uma cena onde somos convocados também enquanto corpos e não apenas enquanto respostas, tais como encontram-se mais ou menos disponíveis para as estruturações neuróticas. Eles precisarão construir um caminho que passará através de nosso corpo, corpo que necessitam manter presente para organizar o seu. Tentarão extrair dele as significações, através dos sentidos que ele emana. E não há como não dar-lhes significações, pois sempre saberão encontrar formas de extraí-las através de restos de nossos olhares, palavras, movimentos e sons.
Assim, não podemos dizer que buscam um saber organizado sobre um determinado enigma que os aflige; mas de alguma forma parecem saber que temos o que possuímos aalgo que lhes é necessário para movimentarem suas estruturas: querem nossa presença , o entorno de seus corpos com nosso olhar significante.
Para que o sujeito com Transtorno de Constituição possa prender-se a uma folha de papel para inscrever seus traços enquanto sujeito, é preciso que ele possa fazer uma relação de substituição entre o corpo materno e a folha. Acreditamos, da mesma forma, que para poder deitar-se num divã , é necessário poder despreender-se do corpo do analista, passagem esta que também faz parte de um processo.
Uma outra questão diz respeito ao sucesso possível de uma abordagem pedagógica utilizando um referencial que tente contemplar a totalidade da problemática e focalize a relação com a criança, enfim, uma abordagem que leve em conta a complexidade da problemática da simbolização e da constituição do sujeito. Como nestas patologias trata-se de criar as estruturas de base do sujeito, acredito que um profissional que possua a visão do todo da constituição, poderá eventualmente realizar a intervenção necessária.
Assim, o sujeito com transtornos, situado numa busca de auto-significação, de emergência de uma posição onde seja possível perguntar-se sobre si mesmo – o que passa por uma organização do seu corpo – pode ser trabalhado também por profissionais como Pedagogas, Fonoaudiólogas e Psicomotristas; eles sem dúvida poderão alcançar um efeito importante nestes tratamentos, caso tenham conhecimento dos processos básicos de constituição subjetiva.

Fazer uma criança deslocar-se do corpo materno, passando pelo especular para finalmente chegar à folha, implica também a abertura para questões situadas fora do campo da palavra, enquanto técnica de interpretação. É necessário, porém, que o profissional, – além de ter um olhar sobre o sujeito e a complexidade de seu processo de constituição – possua uma formação pessoal que sustente este percurso, observando suas passagens e discriminando o momento onde deverá intervir outra especialidade.

Porém, nestes tratamentos ocorrem momentos onde o sujeito incipiente mantém um vínculo com o terapeuta caracterizado pela indiscriminação, momento indispensável para a construção de uma estruturação mais elaborada e diferenciada. É neste sentido que se torna muito importante que o terapeuta domine alguns conhecimentos técnicos sobre estas patologias e suas transferências. Se isto não ocorrer, pode ser levado a manter este tipo de relação, perpetuando um momento simbiótico da constituição do sujeito; o que pode interromper seu processo de constituição e mantê-lo prisioneiro de um certo tipo de estruturação.

Também é fundamental verificar o momento adequado de intervenção do analista, ou seja, é preciso reconhecer quando, mesmo na construção destas bases, faz-se necessário alguma intervenção no sentido de ligar inscrições determinadas, que exigem uma escuta específica do psiquismo, leitura que algumas especialidades não estão capacitadas por seus respectivos aportes técnicos. Pois após as bases construídas, quando o sujeito emerge com pedido de desvelar significações, é necessário que estes profissionais discriminem a especificidade das diferentes formações.

Enfim, organizar uma cena transferencial onde um sujeito possa emergir mais definidamente, ajudá-lo a passar pelo processo onde ele irá se inscrevendo através do seu corpo e a partir do nosso, até que, aos poucos, a concretude destes corpos possa ser deixado de lado, é antes de tudo uma tarefa que exige a capacidade de sustentar uma duplicidade frente ao mesmo: a possibilidade de poder misturar-se e diferenciar-se . Sem pânico de perder-se, nem desagrado de “emprestar- se” temporariamente.

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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