Brincando de matar velhinhas

28/08/2005
[por Débora Yuri / Ilustrações Galismarte]

Crianças e adolescentes vivem a febre dos games politicamente incorretos, em que atropelam, espancam, assaltam, torturam e usam drogas.


Enquanto educadores discutem o impacto da violência na formação das crianças, games se tornam cada vez mais realistas e cruéis.

PLAYGROUND DA MALDADE

Fica pisando na velha!, pede alguém.

Revólver na mão, o homem robusto pula em cima da vítima. O sangue enche a calçada.

– Dá uma paulada na cabeça do carinha!, solta outro.

O homem larga a mulher e a arma, pega um taco de beisebol e mira a cabeça do policial. Tum!

– Agora passa com o carro de ré por cima dele!

Para satisfazer o público, ele arranca um motorista de dentro de seu veículo, joga o sujeito no chão e engata a ré, destroçando seu corpo.

Olhos colados no Playstation 2, entre gritos e gargalhadas, Márcio*, 8, Pedro, 8, e Fabrício, 9, jogam uma das versões de GTA – Grand Theft Auto, na tradução algo como “O grande roubo de carros”.

Em casa ou reunidos em LAN houses, como é o caso desta, sem uma única máquina vazia às oito da noite de uma quinta-feira, crianças e adolescentes cultuam a febre por games politicamente incorretos.

Foi-se o tempo dos jogos tradicionais, em que os garotos brigavam para decidir quem seria o mocinho – e, portanto, o vitorioso: nesses, se dá bem quem colecionar o maior número de barbaridades como roubar carros, atropelar pedestres, matar inocentes com bazuca, fazer programas com prostitutas e depois executá-las, praticar tortura, corrupção policial e consumo de drogas (veja quadro abaixo).

Um dos campeões de audiência é justamente o GTA, cujas novas versões os gamemaníacos costumam aguardar como se fosse o próximo “Harry Potter”. “É o segundo jogo mais procurado aqui, só perde para o futebol, porque estamos no Brasil. O pessoal gosta mesmo é de fazer essas atrocidades que o game permite”, diz Fernando, 28, dono de uma LAN house no Sacomã (zona sul).

Não por falta de opção, diga-se. “Na maioria dos jogos, você tem livre-arbítrio, pode decidir entre ser mocinho ou bandido. No GTA, por exemplo, dá para escolher personagens bons, ser taxista, garçom, manobrista. Mas ninguém quer ser esses porque, dizem, não tem a menor graça”, conta Fernando.

Campeã de vendas entre videogames nos EUA no ano passado, a série foi banida na Austrália. Lançada logo depois, uma versão “com cortes” excluiu a possibilidade, por exemplo, de o jogador pegar prostitutas na rua e fazer sexo com elas. Mas sites e blogs destinados aos fãs ensinam mecanismos para “destravar” cenas de sexo.

A polêmica – sem falar no fascínio – em torno do jogo aumentou depois que garotos americanos presos por roubo de carro afirmaram ter se inspirado no game. No site de relacionamentos Orkut, há comunidades como “Viciados em GTA” e “GTA: Só jogo pela maldade”, com tópicos do tipo “Que maldade vocês acham mais legal fazer?”. Algumas respostas postadas:

“O melhor do jogo é pegar um carro e sair por aí sem ver se é contramão ou calçada (…) aí é só procurar uma velhinha e colocar o carro em cima dela ou pular o polícia!”; “Subir nos capôs dos carros e explodir os miolos do motorista!”; “Eu, particularmente, curto sair por aí matando gente com a chave de fenda”; “Mano, vou te contar que aquela faquinha é um tesão de degolar a galera”…

Terra de ninguém

No Brasil, não existe lei que proíba menores de idade de jogar qualquer game, embora o Departamento de Classificação, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça faça um relatório de orientação sobre a classificação indicativa de jogos eletrônicos. A lista de avaliação dos games está disponível no site www.mj.gov.br/classificacao. Counter Strike, O Justiceiro e a série GTA foram classificados como inadequados para menores de 18 anos.

“Não existe legislação porque não se supunha que chegaríamos a isso, é uma realidade nova. As crianças estão se divertindo de maneira bem assustadora”, diz o advogado criminalista Maurício Zanoide de Moraes, professor de processo penal da Faculdade de Direito da USP e presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

O problema é que não há meios de efetivar o cumprimento da norma, explica Fábio Romeu Canton Filho, conselheiro efetivo da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). “Nas grandes lojas e algumas LAN houses, dá para impor a restrição, mas é impossível fiscalizar relações de internet e o mercado informal. É só o adolescente entrar em um site de vendas, imprimir o boleto e pagar no banco. Fora que, nas bancas de camelô, qualquer pessoa compra games piratas por R$ 10”, complementa.

Aqui, vale dizer que a tecnologia colaborou muito com a disseminação do acesso infanto-juvenil ao que é impróprio. O Playstation 2, videogame em plataforma de CD, é mais fácil de copiar do que um antigo cartucho, o que facilita a pirataria. Jogos originais de PS2 são caros – podem custar até R$ 250-, e a maioria dos jogadores se diverte em casa com CDs piratas. LAN houses ilegais fazem o mesmo. Os jogos para PC, além de disponíveis nos camelôs, podem ser baixados na web.

“A princípio, vejo como única solução o critério dos pais. É como proibir o filho de ver certos programas na TV a cabo. O problema é que, hoje em dia, as crianças passam boa parte do tempo sozinhas em casa”, diz Fábio Canton.

Mais lenha

A influência do entretenimento politicamente incorreto na formação dos jovens é uma daquelas polêmicas sem fim e sem solução à vista. Além dos enormes interesses econômicos envolvidos, a discussão esbarra nos campos da sociologia, psicologia e, uma questão cara aos valores democráticos, na dobradinha censura versus liberdade de expressão.

Na semana passada, a Associação Americana de Psicologia jogou mais lenha na fogueira ao divulgar relatório afirmando que games do gênero podem, sim, deixar crianças e adolescentes mais violentos. A conclusão veio após análise de estudos realizados nos últimos 20 anos. Um deles mostrou que dez minutos de jogo violento bastam para o jogador demonstrar em teste psicológico, logo em seguida, um comportamento agressivo. Outra pesquisa levantou que quem pratica um ato violento em games fica impune em 73% dos casos.

“Games politicamente incorretos fazem mal, porque qualquer exposição excessiva de modelos faz com que eles sejam introjetados na constituição do jovem. Esses brinquedos ensinam o individualismo, a lei do mais forte, que as regras de convivência não valem nada. É uma tragédia social”, afirma a psicanalista infantil Vera Zimmermann, professora do departamento de psiquiatria da Unifesp.

Jogos que estimulam a inteligência e a habilidade são saudáveis, ela ressalva. “A competição tem de ser desenvolvida na criança, mas dentro de um contexto de regras. É isso que nos possibilita viver em grupo. Agora, usar inteligência e habilidade para atropelar idosos e roubar carros é um desvio, uma selvageria.”

Mas nem todo mundo vê um game violento como metáfora do apocalipse. No livro “Brincando de Matar Monstros -Por que as Crianças Precisam de Fantasia, Videogames e Violência de Faz-de-conta” (ed. Conrad), o jornalista e crítico cultural americano Gerard Jones entra como defensor.

“Os games são, de todas as formas de violência no entretenimento, a menos perigosa. O fato de nos fazerem pensar em tiroteios verdadeiros e treinamento militar não significa que as crianças os tratem como tal, quando jogam -seria o mesmo que dizer que consideram soldadinhos de plástico ou peças de xadrez guerreiros de verdade”, escreveu.

Jones cita o caso Columbine, em que dois adolescentes americanos atiraram contra vários colegas de escola. Ambos eram fãs desses games, e muita gente colocou a culpa nos jogos. “Houve 16 tiroteios em escolas, protagonizados por 18 adolescentes, nos últimos anos. Apenas em Columbine os responsáveis eram jogadores exagerados de videogames. Outros elementos eram mais comuns: os garotos costumavam ser ameaçados pelos colegas, eram hostis ou isolados dos pais, tinham feito ameaças de suicídio e mostravam fascinação por notícias a respeito de tiroteios anteriores”.

Educadores brasileiros ouvidos pela Revista não foram tão condescendentes. “O problema maior que vejo é o desrespeito pelo ser humano. Mas não adianta proibir de jogar, porque aí o desejo fica maior. Os pais devem trabalhar essas questões com os filhos, ensinar a ter visão crítica dos jogos”, recomenda Maria Angela Barbato Carneiro, professora da Faculdade de Educação da PUC-SP.

Maria Angela não enxerga saldo positivo neste tipo de game. “Não acho ideal você fazer o inadequado num videogame para fazer o adequado na realidade. Trabalhar a violência com violência é arriscado.”

O psicólogo Miguel Perosa, professor de psicologia da adolescência da PUC-SP, vê com ressalvas essa relação virtual-real. “Pode ser que os games possibilitem o extravasamento de raiva e violência, mas não acredito em mera diversão. Há necessidade de identificação com o propósito do personagem do game”, afirma.

Para o psiquiatra infantil Francisco Assumpção, professor do Instituto de Psicologia da USP, a princípio, o videogame é uma distração como outra qualquer. “Tudo depende de como se usa. O problema não é o videogame, e sim o uso que se faz dele. Os pais precisam conversar e ficar junto do filho. Se ele não joga videogame, não estará participando da cultura da idade dele e será um coitado, como aquele que não pode ver TV, comer hot-dog ou tomar Coca-Cola.”

Acontece que vários pais e mães não têm noção do que se passa no mundo dos games. “Eles muitas vezes nem sabem do que se trata o jogo, enquanto as crianças ficam batendo em velhinhas com naturalidade. Por isso, é bom pesquisar antes de dar um game ao filho”, recomenda a psicanalista Vera Zimmermann.

Outros até sabem, mas não vêem coisa ruim ali: “Não tenho nada contra isso. Achei até bom para o desenvolvimento das crianças, porque o inglês deles melhorou. Tem todo um processo para conseguir entrar no jogo e, se não entender inglês, você não entra”, diz a auxiliar administrativa Verônica, 35, mãe de Márcio e Pedro.

Os meninos que jogam concordam com ela. “Não é porque matei uma mulher no videogame que eu vou ali na esquina fazer o mesmo. É uma coisa do jogo fazer maldades”, afirma João Lucas, 11, fã de GTA, que vai para frente do Playstation 2 assim que chega do colégio. “Meus pais deixam eu jogar tudo que eu quiser. O GTA eu ganhei do meu pai de aniversário, no ano passado. Eu tinha pedido um game de futebol, mas ele disse que não achou e veio com esse.”

Já que não dá para pedalar e fazer gol…

 

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Dra. Vera Blondina Zimmermann
Dra. em Psicologia Clínica - PUC-SP, Professora afiliada do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Bebês com Sinais de Risco em Saúde Mental no mesmo departamento. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto SEDES SAPIENTIAE onde coordena o curso Clínica Interdisciplinar da Primeira infância.

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